Ainda ontem era terça e hoje já é quarta. Incrível como o tempo se encadeia com esta infalível precisão, sem nunca se engasgar.
Sento-me num qualquer objecto designado para sentar e dou por mim a pensar baixinho, num tom semigrave e em lá menor, que nunca anuiria a que a Manuela Ferreira Leite me fizesse um broche. Para que não me tomem por machista, o mesmo se aplica ao Marcelo Rebelo de Sousa. Não sou misógino, talvez um dos unicos defeitos que não tenho, sou é bastante criterioso em relação a com quem me engajo, ou não, na intrincada arte do felácio.
E com isto mais uns minutos passaram no relógio, o tempo a correr, sem nunca tropeçar, nem numa pedra, nem numa flor, nem na morena do outro lado da rua, ou num amor sem fim de uma noite só.
quarta-feira, 24 de junho de 2015
domingo, 7 de junho de 2015
Apaguem a lua que eu quero dormir
Se eu pudesse amava toda a gente. Mas não posso. Nem quero. Além disso não me dá jeito nenhum fazer fretes. Por isso decido amar apenas quem ama, com ganas, com asas, com brasas espalhadas e tentativas falhadas. Com garras para agarrar e não largar o que se persegue. Gente com o coração na boca, o sangue na guelra e o pelo na venta. Com olhos que brilham muito e sorrisos rasgados, sinceros, desinteressados. Da gargalhada estridente, das mãos calejadas, do perder a noção do tempo embalado no colo daquela a que chamam má vida, erradamente; por ser, efectivamente, a melhor delas. Gente com tempero, sem medo de ter medos e incertezas. Que cultive dúvidas como cogumelos, que faça perguntas sem receio de descobrir que está errado. Gente que se enfrente, que se assuma, que se imponha.
Enfim, gente (que) viva. Porque a única vida má é uma vida-morta.
quinta-feira, 4 de junho de 2015
Sul
Ao sul as horas derretem ao sol, e eu com elas vou escorrendo rua abaixo.
Pouco importa o que eu acho, senão o que eu vou fazendo. Pela rua abaixo.
Escorrendo, escorrendo até ao esgoto mais próximo.
Sendo o meu fim o mesmíssimo do que o dos demais, não mais do que fertilizante para vegetais.
Mas meu caminho é divergente, mania de ser diferente, de querer mais do que futebóis, de querer ser gente.
Sem 3D, 4G, a morar num T, com o Cristiano no LCD a medir pilas em HD.
Sempre à procura do ponto G, que fica na testa mas ninguém sabe e, por isso, ninguém o vê.
Arrebanhado ao múltiplex, ibex, simplex. Pendurado no psi20 com o olho no dowjones para ver se não desce.
Pela rua abaixo escorrendo vou, para trás deixando tudo o que não sou.
Pouco importa o que eu acho, senão o que eu vou fazendo. Pela rua abaixo.
Escorrendo, escorrendo até ao esgoto mais próximo.
Sendo o meu fim o mesmíssimo do que o dos demais, não mais do que fertilizante para vegetais.
Mas meu caminho é divergente, mania de ser diferente, de querer mais do que futebóis, de querer ser gente.
Sem 3D, 4G, a morar num T, com o Cristiano no LCD a medir pilas em HD.
Sempre à procura do ponto G, que fica na testa mas ninguém sabe e, por isso, ninguém o vê.
Arrebanhado ao múltiplex, ibex, simplex. Pendurado no psi20 com o olho no dowjones para ver se não desce.
Pela rua abaixo escorrendo vou, para trás deixando tudo o que não sou.
sábado, 18 de abril de 2015
Farófias
tu vais
ele vai
nós vamos
vós ides
eles vão
eu fico.
a fazer fintas
a um copo de tinto.
que até preferia que fosse de absinto,
que bem cairia se fosse de absinto.
puro e duro, sem rodeios,
por isso troco e risco o copo
e tropeço mais um pouco.
no corpo trôpego e desajeitado
abraçando o escuro
dou-me conta de que não sei fazer farófias.
ele vai
nós vamos
vós ides
eles vão
eu fico.
a fazer fintas
a um copo de tinto.
que até preferia que fosse de absinto,
que bem cairia se fosse de absinto.
puro e duro, sem rodeios,
por isso troco e risco o copo
e tropeço mais um pouco.
no corpo trôpego e desajeitado
abraçando o escuro
dou-me conta de que não sei fazer farófias.
quarta-feira, 1 de abril de 2015
À tardinha
Acordou a roer uma bota de borracha. Era já a terceira vez naquela semana que despertava com hálito a galocha. Cuspiu a bota, lavou a boca sete vezes (ou meia dúzia) com desentupidor de canos ultra concentrado de tripla acção incandescente e extra efeverscência garantida. Inofensivo para os anões caucasianos de meia idade mas letal para a comunidade de ursos polares da ilha do Rato. Antigamente eram aos cardumes, hoje em dia não se lá encontra um, mesmo procurando muito bem e sendo um indivíduo que domine a arte de bem procurar.
Aborrecia-lhe o glamour das mamas de silicone, os jactos privados davam-lhe sono e limpava com assídua frequência o cú a listas VIP das mais variadas proveniências. Ocasionalmente cheirava-lhe a esturro, era aquela coisa do conflito geracional que cozinhava algures em algum lugar desencantado da cidade. Certamente numa vida cabem todas as idades e nem por isso se entra em conflito consigo próprio, pelo menos não por essas razões. Pensava para com os seus botões, que eram poucos, os que restavam.
Exasperava por algo mais que não apenas o contentamento da vaidade, caixinhas enfeitadas com lacinhos ás corzinhas, vazias na sua maior parte.
sexta-feira, 27 de março de 2015
Mãos ao alto
Na mão fechada segurava a hora que teimava em passar. A outra mão, vazia, usava-a para se safar por intermédio de fumo e artifícios. Avançava pela calada, sempre à espera de nada com a veia da testa a latejar. Empenhado em fechar a mão tropeçou num burocrata, bateu com a boca três vezes no mesmo lugar. Manias e vícios que agarrava, figurativamente, com ambas as mãos. Felizmente para si, e não tanto para os demais tinha o carisma de uma batata. Obstaculizava-se a olhos vistos na tentativa atabalhoada de atalhar caminhos. Incessantes périplozinhos a dar um ar da sua graça, que era nenhuma. Os pés p'las mãos, os pés na poça, o volta e vira e volta e vira e fica na mesma. Um cabaz de inutilidades à disposição de uma forma rara de existência. Nada mais do que o menos possível.
sábado, 21 de março de 2015
Até 'tou cos calores
Na minha terra os homens não choram. São rijos como o aço, daquele aço que baixa as calças e come e cala, desde que o assunto não seja futebol claro está. São feitos da matéria com que se fabrica a subserviência (que não se devia nunca confundir com humildade). Filhos da educaçãozinha cristã que faz com que tudo seja da nossa conta, especialmente aquilo que não o é. Com quem se dorme, com quem se acorda, por qual orifício se obtém ou não prazer. A mesma educação que nos ensina a perdoar tudo, da errónea natureza do ser humano, de conceder sempre outra oportunidade ao próximo. A não ser que ele chupe piças, nesse caso é queimá-lo na fogueira.
O nosso maior inimigo são as fufas com intenção de adoptar criancinhas (que irão ser um dia umas grandes fufas também, mesmo que sejam gajos), o que nos fere de morte a integridade são essas gajas que andam com uns e outros sem darem explicações a ninguém. Afinal quem é que elas pensam que são, homens?
Tudo o resto nos passa ao lado, tudo resolvido e perdoado num piscar de olhos. E cá vamos, sorrindo e servindo a quem nos manda cavar a nossa sepultura.
terça-feira, 10 de março de 2015
O amanhã começa hoje
Não me deixo ficar,
quando muito deixo-me levar.
Por vezes longe demais, se é que isso existe. Em várias órbitas. Aleatoriamente.
E mesmo assim consigo ficar aquém
na minha sensação de insatisfatória satisfação.
Transito entre estados, de corpo e alma,
vou de sólido a gasoso em menos de um triz
e vice-versa,
que é o mesmo que dizer de triz a sólido em menos de um gasoso.
Volátil seria a palavra que melhor descreveria
este peculiar fenómeno se para tal houvesse razão,
o que não é o caso.
Guardo o meu melhor para o fim,
garantia de que o melhor está para vir ainda um dia,
que pode ser hoje,
que pode ser já
e por isso me mantenho alerta, para quando esse tempo chegar não me apanhar de braços caídos aguardando
a derrota sem nunca sequer ter lutado.
E se for para perder que seja de pé
e não ajoelhado,
ou curvado em vénia a minúsculos gigantes.
quando muito deixo-me levar.
Por vezes longe demais, se é que isso existe. Em várias órbitas. Aleatoriamente.
E mesmo assim consigo ficar aquém
na minha sensação de insatisfatória satisfação.
Transito entre estados, de corpo e alma,
vou de sólido a gasoso em menos de um triz
e vice-versa,
que é o mesmo que dizer de triz a sólido em menos de um gasoso.
Volátil seria a palavra que melhor descreveria
este peculiar fenómeno se para tal houvesse razão,
o que não é o caso.
Guardo o meu melhor para o fim,
garantia de que o melhor está para vir ainda um dia,
que pode ser hoje,
que pode ser já
e por isso me mantenho alerta, para quando esse tempo chegar não me apanhar de braços caídos aguardando
a derrota sem nunca sequer ter lutado.
E se for para perder que seja de pé
e não ajoelhado,
ou curvado em vénia a minúsculos gigantes.
terça-feira, 3 de março de 2015
Sem filtro
Apesar de o planeta estar a aquecer há um frio persistente que cresce na proporção inversa que insiste em arrefecer-nos por dentro. Uma espécie de idiotice crónica a propagar-se como asfixiantes fungos por todo o lado e sem fim à vista.
Não são os políticos, os gestores e os banqueiros que não têm memória, sou eu. Que aprendi há muitos anos, e infelizmente não na escola, que são todos aldrabões, bem falantes e elegantemente trajados é certo mas mesmo assim aldrabões. Só que me esqueço na hora de sair à rua e protestar, na hora de bater o pé ao patrão, na hora em que me esqueço de pôr os pés à parede e me deixo apanhar entre ela e a espada. Sair à rua para pô-los na rua dá-me mais trabalho do que ficar a vê-los arruinar a terra dos meus avós. Que se fodam os países, as fronteiras, os muros e as vedações. É a terra que piso, onde quer que seja, que é minha enquanto estiver vivo, para cuidar e proteger até a entregar, como a encontrei, a quem vier a seguir.
Se é preciso lenha que se queimem os ricos que ardem melhor com tantos adereços e aditivos e activos tóxicos. Não se lipoaspirem queridos, autolobotomizem-se e doem-se à ciência, se querem variar inscrevam-se como voluntários numa fábrica de vibradores como testadores de produto. Ao menos se comprassem umas ilhas, ou um oceano, sei lá, e se mudassem para lá e por lá ficassem a chupar caralhos, de preferência sem abrir muito a boca que é falta de etiqueta falar com a boca cheia.
quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015
Só me apetece é uivar à Lua
Dizem que a vida são dois dias mas já passaram uns bons pares de semanas desde que nasci, novecentos e sessenta e dois para ser mais exacto, nada de relevante ou sequer de irrisório, contas de um rosário que eu nunca segui. Pr'aí dez, ou mais, mandamentos que decidi legitimar não os acatando, fundamentos fundamentados em passados defraudados por documentos falsificados em caves obscuras de templos diversos. Aqui me mantenho, um renitente grão de areia, reincidente do cair com estilo e levantar com graça, acredito ser maior do que o que aparenta o meu tamanho, não duvido que tenho dúvidas e quase sempre me engano a meu favor, como qualquer outro. Tudo o que gostaria de ouvir era tudo o que nunca ouvi enquanto me canso de esperar pela esperança, no entanto não me canso de dançar na chuva molhada, matar a sede com a água sagrada das mais recônditas nascentes.
É preciso querer muito mais, esgravatar a terra com as unhas, desbravar caminhos que não sejam becos sem saída, galgar terreno, pôr os colhões em cima da mesa porra. Não, que isso só não basta, há que bater com eles estrondosamente na mesa e dizer chega. Depois é meter gelo que é coisa que tudo alivia.
É preciso querer muito mais, esgravatar a terra com as unhas, desbravar caminhos que não sejam becos sem saída, galgar terreno, pôr os colhões em cima da mesa porra. Não, que isso só não basta, há que bater com eles estrondosamente na mesa e dizer chega. Depois é meter gelo que é coisa que tudo alivia.
terça-feira, 17 de fevereiro de 2015
O mordomo
Esperava ansiosamente que lhe ordenassem o que fazer, para poder viver.
Uma vida vazia sem a ordem do patrão e ao fim do dia a gamela de ração pela mão que não se morde. Prostrado, marreco de olhar para o chão para ver onde pôr os pés. Quando os pés se querem asas.
terça-feira, 10 de fevereiro de 2015
Para começar
A Deus serrei-lhe as pernas, estava alto demais. Aos gurus serrei-lhes a cabeça, pelas mesmas razões. Não sei se já disse que não vou em futebóis, ou sequer em procissões, que é como quem diz redes sociais, virtuais ou não virtuais, analógicas ou digitais. E muito menos em super-heróis de fancaria fabricados em série. Como diz a canção "quando tu me vires no futebol, estarei no campo, cabeça ao sol". Sou assim, temperado pela intempérie, encaminhado pelos maus caminhos até ao caminho certo, que há-de chegar um dia. Vomitado pelo tempo num dia de tempestade, é o caos meu aconchego, toda a minha ambição é desapego do lastro que me atrasa e me arrasta na lama rasa de alma vazia da mediocridade. Como se eu o fosse menos do que os demais aqui na minha gaiola.
sábado, 24 de janeiro de 2015
A cena do ódiozinho
Enche a pança que eu pago.
Enche a pança, que me hás-de um dia
comer o sapato com laranja;
e saber-te-á a caviar beluga e a faisão de canja.
Aperta a gravata, ajeita-lhe o nó, que eu pago.
Endireita o lenço de cetim na lapela
do fato Armani que eu comprei para ti.
Ó coqueluche de coisa nenhuma.
Das universidades onde o saber não ocupa lugar algum.
Ó massa cinzenta a apanhar pó,
nas prateleiras do know-how e do management
das contas de subtrair e de sumir com o que é dos outros.
Ó laço, lacinho, laçarote
para empiriquitar o inempiriquitável.
Ó quilos de maquilhagem dos olhos aos entrefolhos,
qu'é merda que não há esgoto que esgote.
Ah, que eu sinto, sinceramente,
que sou a central de Fukushima e o Coliseu a arder.
De todas as bonecas que podias comprar
escolheste a mais cara (que nem sequer era a melhor).
Carregadinha de aditivos e de toda a espécie de conservantes,
mais a coleira de diamantes que eu paguei,
que lhe puseste logo ao pescoço à laia de ferro em brasa no quadril.
A legítima esposa deixaste-a em casa apalaçada paga com conta off-shore,
numa de chás, canapés e canasta; e, de quando em vez, férias pagas por mim no Brasil.
Tu, que nem sabes contar até mil, só a partir de um milhão.
E eu aqui, na migalha da migalha
sem um tostão para esconder no off-shore,
com a austeridade entalada na garganta
e sem nada para ajudar a empurrar.
Ó côdea de pão com três semanas
que o diabo amassou em noite de trovoada.
Ó trabalho precário mais ou menos pago
às vezes que é melhor que nada.
Ó meia rota qu'é para ajudar a arejar.
Ah, que eu sinto, sinceramente, que sou a central de Fukushima e o Coliseu a arder.
por Monsieur Lefebre, (esboço de) poeta repentista experimentalista do barroco pós-moderno e acérrimo percursor do movimento anti-troglodita
Enche a pança, que me hás-de um dia
comer o sapato com laranja;
e saber-te-á a caviar beluga e a faisão de canja.
Aperta a gravata, ajeita-lhe o nó, que eu pago.
Endireita o lenço de cetim na lapela
do fato Armani que eu comprei para ti.
Ó coqueluche de coisa nenhuma.
Das universidades onde o saber não ocupa lugar algum.
Ó massa cinzenta a apanhar pó,
nas prateleiras do know-how e do management
das contas de subtrair e de sumir com o que é dos outros.
Ó laço, lacinho, laçarote
para empiriquitar o inempiriquitável.
Ó quilos de maquilhagem dos olhos aos entrefolhos,
qu'é merda que não há esgoto que esgote.
Ah, que eu sinto, sinceramente,
que sou a central de Fukushima e o Coliseu a arder.
De todas as bonecas que podias comprar
escolheste a mais cara (que nem sequer era a melhor).
Carregadinha de aditivos e de toda a espécie de conservantes,
mais a coleira de diamantes que eu paguei,
que lhe puseste logo ao pescoço à laia de ferro em brasa no quadril.
A legítima esposa deixaste-a em casa apalaçada paga com conta off-shore,
numa de chás, canapés e canasta; e, de quando em vez, férias pagas por mim no Brasil.
Tu, que nem sabes contar até mil, só a partir de um milhão.
E eu aqui, na migalha da migalha
sem um tostão para esconder no off-shore,
com a austeridade entalada na garganta
e sem nada para ajudar a empurrar.
Ó côdea de pão com três semanas
que o diabo amassou em noite de trovoada.
Ó trabalho precário mais ou menos pago
às vezes que é melhor que nada.
Ó meia rota qu'é para ajudar a arejar.
Ah, que eu sinto, sinceramente, que sou a central de Fukushima e o Coliseu a arder.
por Monsieur Lefebre, (esboço de) poeta repentista experimentalista do barroco pós-moderno e acérrimo percursor do movimento anti-troglodita
quarta-feira, 21 de janeiro de 2015
No Planeta Vazio
No planeta vazio não há pessoas, apenas invólucros e embalagens. Milhares de milhões de embalagens. Que se passeiam de um lado para o outro montadas em embalagens muito brilhantes, com rodas também muito brilhantes, há algumas até que voam, que usam para mostrar às outras embalagens que são um tipo muito superior de embalagem, alheadas do facto de serem todas exactamente iguais. E a que tem a que brilha mais ganha, apesar de não ganhar absolutamente nada. O dia a dia é passado a tentar acumular o máximo de pedaços de papel, que podem ser posteriormente usados para acumular mais embalagens, e quem tem mais pedaços de inútil papel ganha. E quem acumular mais embalagens também ganha. Deve ser divertido viver no Planeta Vazio. E simples, estupidamente simples acredito. E aborrecido, tragicamente aborrecido por vezes, imagino.
sexta-feira, 16 de janeiro de 2015
A cena do ódio - Almada Negreiros
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terça-feira, 13 de janeiro de 2015
Longitude
Quando eu te falei em amor não era a sério, e ainda bem porque de qualquer maneira tu não estavas lá para ouvir. Eu estava só, tão só como se pode estar no meio de uma multidão. Tão singular e circunscrito como só eu sei ser dentro deste corpo de delitos e pequenas infracções à monocromia. Deixei uma luz acesa para que ninguém tropeçasse na hipocrisia, que dormia num degrau das escadas, e saí. Não era a primeira vez que saía, sem saber para onde, sem dar um passo, agarrado a um livro ou a um caderno, e viajava mundos inteiros, de fio a pavio. E sonhava sonhos impossivelmente impossíveis, em que me cresciam asas, mas por dentro.
Normalidade
Liberdade de pressão, qual panela ciciante pronta a rebentar. Realidade de cartão geneticamente modificada. Na liberdade de expressão enlatada semeia-se a depressão, daí esta constante falta de ar. Quase que é mas nunca chega a ser, parece que é agora. Ou agora. Ou agora. Mas nunca chega a acontecer.
É preciso pagar para ver e ver para crer no que não acreditam os próprios olhos. É preciso muito mais do que bandeiras que se agitam enquanto os processos se arquivam aos molhos, palavras que se gritam enquanto a caravana passa e nos leva couro, cabelo e carcaça. Com medidas desmedidas avulso, tomadas entre fartos almoços, tirem as mãos dos meus bolsos, são sete cães a um osso, mas eu reajo por impulso e também mordo se a coisa der para o torto.
domingo, 11 de janeiro de 2015
Os ofendidinhos
Antes de mais quero apenas dizer que este ano só tenho amor para dar. Quem me conhece sabe que sou um querido, mas este ano estou irremediavelmente apaixonado, amo toda a gente, em especial quem nunca amei ou amarei em tempo algum. Amo a Isabel Jonet, o Ricardo Salgado, a Angela Merkel e o Netanyahu que são Charlie mas ninguém diria. Amo o Soares, o Cavaco, o Durão, o Sócrates e o Pedrinho, que governaram e governam mas também ninguém diria. Amo, mas do fundo do baú do amor que guardo dentro de mim, o Ministério das Finanças e todos os seus funcionários, a quem aproveito para desejar aqui um bom ano. E é isto, nada mais do que amor para dar.
Apesar de tudo, há coisas que me continuam a atazanar o espírito, que pelos vistos não passam pelas cabecinhas de tanta gente indignada por tudo e por nada. Desde bonequinhos numa página de revista até sketches humorísticos na Internet tudo é uma afronta para quem se ofende com pouco.
O que deveria ofender muito mais os árabes é a forma como são tratadas as suas mulheres em certos países, impedidas de estudar, de opinar, de serem independentes. O que deveria ofender muito mais as sociedades ocidentais, ditas civilizadas, é a pobreza infantil, a corrupção, a galopante clivagem social que faz com que uns andem de jactos privados e outros durmam pelas ruas.
Mas isto sou eu a pensar alto, espero que ninguém se ofenda. Talvez isto sejam coisas de menos importância e eu esteja apenas a exagerar, não seria a primeira vez. Agora deixa-me lá ir ver quem ganha a Bola de Ouro, porque se não ganha o Ronaldo eu vou para a rua gritar como na canção do Zeca. Não me obriguem.
terça-feira, 6 de janeiro de 2015
Como um pinguim na Amazónia
São coisas que acontecem, que nos aparecem, que vêm sabe-se lá de onde e que ninguém sequer desconfia para onde vão. Num vão de escada sentada de pata cruzada estava uma rena transviada em pleno pico do Verão. Verão que vão ver o que quero dizer quando não tarda me acabem as palavras, as minhas melhores frases são ditas de boca fechada, as mais sábias palavras saem quando não digo nada. Que é como quem diz quando o sono me domina, ou seja, a maior parte do meu tempo disponível, em que me aborreço contando carneiros que teimam em multiplicar-se.
sexta-feira, 2 de janeiro de 2015
estórias de encantar - uma noite em branco (3)
Deixaram o carro, e o zelo, estacionados na vila e iniciaram a subida ao Monte da Lua. Por todo o lado nasciam plantas de todos os tipos, que rompiam pelas pedras conquistando a serra e envolvendo-a num fervilhante manto de vida em constante mutação.
Desviaram-se da estrada e avançaram pelo mato adentro, sempre a subir por entre as árvores. Lá em cima a Lua desenhava a silhueta de um castelo, havia algo no ar que lhes causava arrepios, qualquer coisa que não conseguiam explicar mas que os fazia moverem-se com destreza felina por entre o mato, saltando de pedra em pedra ou agachando-se aqui e ali, como por instinto, para fugir de um ou outro ramo no caminho. A escuridão só era interrompida por alguns raios de luar que conseguiam romper pelas copas das árvores.
Pararam numa clareira salpicada por enormes pedregulhos de granito para finalmente desfrutar da recente aquisição de Brás na sua aventura no Bairro Alto. Conseguiam sentir o calor que emanava das monumentais pedras, subiram para a maior delas e sentaram-se a olhar o imenso céu. Sentiam a energia a circular, da terra para as pedras subindo por eles acima e fluindo de novo para a terra. Eram parte da corrente, e ganhavam aos poucos consciência disso naquele lugar de encantamento. As árvores pareciam esticar os ramos na sua direção, como que esboçando um cumprimento, a floresta enchia-se de vida e movimento, assinalando com eles o subtíl despertar de algo que traziam dentro de si desde que eram gente. A fronteira entre a floresta e os seus corpos desvanecia-se lentamente, tornando impossível distinguir onde terminavam as raízes das árvores e onde começavam as suas próprias raízes.
Brás sacou do cigarro de erva, levou-o à boca e chegou-lhe o isqueiro aceso, inspirando tão avidamente que desatou a tossir de imediato. Esperou um pouco e voltou à carga, desta vez menos ambicioso, mas mal tinha acendido o isqueiro e já o céu se tinha aberto para deixar cair sobre eles uma monumental carga de água, que libertava todo o tipo de sensações ao cair no chão. A vida que crescia em cada gota de chuva, a renovação a acontecer em cada poça de água, um milagre em cada valioso salpico.
Da terra emanava um quente aroma que os despertava com mais pujança que um café duplo. Ao fim de uns minutos, e tão de repente como tinha começado, a chuva parou, e de entre as nuvens surgiu de novo a Lua cheia.
- Bem, deixa lá ver se é desta. Disse Brás, preparando-se para acender o isqueiro, indiferente ao facto de estar encharcado até às meias.
- Sinto-me com dez metros de altura e vários quilómetros de diâmetro. Divagou Gomes de Sá.
- Tu realmente sempre foste assim para o cabeçudo. Disse Brás antes de soltar o fumo trancado nos pulmões, envolvendo-os numa nuvem que, por momentos, abafou o cerrado nevoeiro.
- Não é nada disso. Há qualquer cena nas árvores que eu não consigo explicar mas que desperta alguma coisa em mim.
- E é bom?
- Mais do que isso.
- Então, se calhar é melhor não tentares explicar que é para não estragar, o que quer que seja.
Continuaram a subida pela floresta, com passos lestos e decididos como se conhecessem a serra como as palmas das suas mãos e soubessem perfeitamente para onde caminhavam.
- Isto faz-me mesmo lembrar aqueles filmes de terror em que há sempre alguém que desaparece. E normalmente é sempre o que se deixa ficar para trás. Na floresta...uhuhuhu... Em noite de lua cheia. Observou Brás, já a dar corda aos sapatos.
- Já começas? Deixa-te lá mas é de filmes, está tudo tão tranquilo. Replicou Gomes de Sá, acelerando também pelo sim pelo não.
- Pois, é sempre quando está mais tranquilo que o último desaparece. Por falar nisso, não era aqui em Sintra que faziam uns rituais maléficos? Com galinhas e tudo.
- Deves estar a gozar, não vejo nisso qualquer motivo para preocupações. A não ser talvez o desperdício de uma boa cabidela.
Quando deram por eles estavam a correr pela serra acima entre tropeções, gargalhadas e uma ou outra rasteira de quando em vez para animar a coisa.
- Olha que o último desaparece. Insistiu Brás, passando a abrir por Gomes de Sá e desaparecendo de repente após tropeçar num ramo perdido e cair no chão, levantando-se de imediato, como se tivesse molas no rabo, e seguindo caminho a sacudir o pó como se nada se tivesse passado.
- Não é nada disso. Há qualquer cena nas árvores que eu não consigo explicar mas que desperta alguma coisa em mim.
- E é bom?
- Mais do que isso.
- Então, se calhar é melhor não tentares explicar que é para não estragar, o que quer que seja.
Continuaram a subida pela floresta, com passos lestos e decididos como se conhecessem a serra como as palmas das suas mãos e soubessem perfeitamente para onde caminhavam.
- Isto faz-me mesmo lembrar aqueles filmes de terror em que há sempre alguém que desaparece. E normalmente é sempre o que se deixa ficar para trás. Na floresta...uhuhuhu... Em noite de lua cheia. Observou Brás, já a dar corda aos sapatos.
- Já começas? Deixa-te lá mas é de filmes, está tudo tão tranquilo. Replicou Gomes de Sá, acelerando também pelo sim pelo não.
- Pois, é sempre quando está mais tranquilo que o último desaparece. Por falar nisso, não era aqui em Sintra que faziam uns rituais maléficos? Com galinhas e tudo.
- Deves estar a gozar, não vejo nisso qualquer motivo para preocupações. A não ser talvez o desperdício de uma boa cabidela.
Quando deram por eles estavam a correr pela serra acima entre tropeções, gargalhadas e uma ou outra rasteira de quando em vez para animar a coisa.
- Olha que o último desaparece. Insistiu Brás, passando a abrir por Gomes de Sá e desaparecendo de repente após tropeçar num ramo perdido e cair no chão, levantando-se de imediato, como se tivesse molas no rabo, e seguindo caminho a sacudir o pó como se nada se tivesse passado.
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