terça-feira, 23 de setembro de 2014

estórias de encantar - Amores perfeitos

Ao final da tarde dirigiram-se ao café de Chico,  que os esperava para o jantar. 
Quando chegaram Chico retirava para um tabuleiro a última fornada de pão daquele dia. Usava uma mistura à base de lenha de eucalipto para alimentar o pequeno forno, o que dava ao pão um aroma e um sabor muito próprios, uma espécie de assinatura do autor como gostava de dizer.
Chico suava com o calor que emanava do forno e com a energia despendida naquele árduo processo, mas sorria como uma criança enquanto virava os pães no tabuleiro para ver se estavam a seu gosto, avaliando o tamanho e a consistência. Sempre pensando naquilo que poderia eventualmente melhorar na perseguição do auto-imposto objectivo de criar o pão perfeito.
- Provem  aqui isto e depois digam-me o que acham. Este tem passas... E este pinhões. Disse ele com os olhos a brilhar enquanto partia com as mãos o pão e o partilhava ainda fumegante.
Os dois amigos não se fizeram rogados, até porque estavam esfaimados à conta da maresia e dos cigarros marroquinos,  e atacaram furiosamente o pão.  Mas mal o puseram à boca estacaram-se na sua euforia e abrandaram os sentidos, forçados a travar por aquela explosão de sabores e texturas. Podiam sentir a massa arejada e fofa, o tempero perfeito, a crosta crocante que estalava à primeira dentada,  um sabor a lenha, um travo a paixão e saberes ancestrais que aquele pão guardava dentro de si.
- Hum. Acho que até soltei uma pinguinha,  preciso de um cigarro. Disse Brás ainda de olhos fechados a saborear o pão de passas.
- Sim senhor Chico, merecias um prémio por este pão.  Mas não era um prémio qualquer, tinha de ser tipo um Nobel do Pão ou coisa assim do tipo. Concordou Gomes de Sá. 
Seguiram Chico até sua casa, a poucos minutos dali. Quando chegaram foram recebidos por Pantufa e Pipoca, os dois cães rafeiros de Chico que os esperavam ao portão.  No alpendre Timóteo,  o gato, espreguiçava-se vagarosamente por baixo de um banco comprido feito de paletes.  A seu lado Zara, a gata,  afiava as unhas nas pernas de uma mesa, também ela feita de paletes.  Pendurada na parede por cima da mesa uma guitarra, com marcas de uso, traços de guerra que mostravam que era mais do que  um mero objecto decorativo.
Gomes de Sá desaparecera entretanto pelo jardim adentro, guiado pelo cheiro a alecrim, tomilho e alfazema que o vento gentilmente  depositara nos seus sensores olfactivos. Ao redor da casa cresciam todo o tipo de ervas, frutos e legumes. Percorreu lentamente o terreno, deixando-se acordar pelo cheiro a terra molhada até regressar novamente à entrada da casa.
- Nada mau, bela horta amigo. E também gostei das aromáticas,  és tu que cuidas?  Perguntou a Francisco. 
- Não,  é o Gonçalo,  o meu companheiro. Quer dizer, eu dou uma ajuda mas ele é que tem os dedos verdes,  tudo o que ele planta cresce. Já eu sempre que tento semear alguma coisa é uma tragédia.
Entraram em casa e deixaram os sapatos à porta, Francisco tratou de instalá-los e apresentar-lhes o resto da casa. Deixou-os no sótão renovado por ele e por Gonçalo,  que era agora o quarto de hóspedes,  indispensável para quem estava longe de casa e gostava de receber os amigos. Os que conhecera desde sempre e os que encontrara ontem, que tinham em comum a energia que os atraía e fazia com que se cruzassem por vezes nas suas órbitas.  Pontos comuns diriam alguns. 
Francisco pegou numa cesta e foi até à horta ver o que podia usar para o jantar enquanto Gomes e Brás aproveitaram para se acomodarem e se passarem por água doce para tirar o sal.
Gomes de Sá correu para a casa de banho para ser o primeiro a tomar duche porque Brás demorava sempre uma eternidade com cantorias e figuras ridículas em frente ao espelho. Tomou duche,  vestiu-se e saiu para o alpendre onde a noite já se tinha instalado e o silêncio era apenas quebrado aqui e ali por um ou outro mais resiliente grilo. Pipoca e Pantufa apressaram-se a vir cumprimentá-lo efusivamente, desaparecendo depois a correr pelo jardim afora. Mais tarde Timóteo acabaria também por se apresentar,  sem grandes confianças, roçando-se apenas nas suas pernas ao passar por ele.
Pegou na guitarra azul e sentou-se com ela no banco comprido, sentiu-lhe o peso e passou-lhe as mãos suavemente ao longo da caixa, seguindo as suas curvilíneas formas.  Pousou-a no colo e tocou na primeira corda para lhe conhecer a voz, depois tocou na segunda, e a seguir na terceira  e por aí adiante até chegar à sexta, apertando ou relaxando a tensão até chegar à afinação desejada. Quando finalmente acertou  deixou-se ficar à espera que a guitarra lhe desse o sinal para começar, porque aquele não era um processo de anexação violenta mas sim de consentida aproximação. Para tocar era preciso o consentimento da própria guitarra,  havia mesmo histórias de guitarras que se recusavam a tocar nas mãos de uns e de outros e que só se mostravam em todo o seu potencial no colo do seu designado cúmplice. 
Sem dar por ela começou a dedilhar as cordas com a mão direita enquanto  as pressionava ao longo do braço com a esquerda. Não fazia ideia do que era um Dó,  ou qualquer outra nota por sinal,  e a guitarra agradeceu-lhe por poder caminhar por outros caminhos,  fugir ao triste destino dos mesmos acordes repetidos vezes sem conta e tantas outras vezes ouvidos na boca de outras guitarras. Ficaram por ali algum tempo, que lhes pareceu curto porque tinham tanto para conversar mas na realidade tinham passado quase duas horas e de dentro de casa vinha já um cheirinho que lhe inundava as fossas nasais.
Brás balançava-se na rede saboreando a melodia com Zara ao colo quando Francisco abriu a porta e disse:
- Está tudo pronto,  já falei com o Gonçalo e deve estar aí a chegar. Por isso meninos é lavar as mãozinhas e ir para a mesa. 
 Gonçalo chegou minutos depois com um ramo de flores na mão escondida por trás das costas. Faziam três anos que haviam dado o nó, oficialmente porque estavam juntos há mais de dez. Mas naquele mesmo dia, há três anos atrás, trocaram alianças diante da família e amigos, com tudo o que achavam ter direito.
Dirigiu-se a Francisco e estendeu a mão revelando o enorme ramo.
- Amores Perfeitos! Exclamou Francisco.
- Sim, meu amor. Porque também os há.  Respondeu Gonçalo a sorrir.
Chico apresentou o seu companheiro aos dois amigos e conduziu-os a todos em rebanho para a mesa, porque o peixe começava a perder a graça. Deixou-os  na mesa para ir tirar o tabuleiro com o sargo pescado no dia e os legumes colhidos horas antes.
Pousou o tabuleiro na  mesa, sentou-se e esperou que todos se servissem para reclamar para si o merecido prémio pelo esforço e dedicação que pusera naquela refeição,  a sua parte favorita, a cabeça do peixe. Que desmantelou minuciosamente até sobrar apenas um monte de espinhas.
- Bem, nunca pensei que uma cenoura pudesse saber tanto a cenoura, se é que isto faz algum sentido. O que é que lhes metes? Perguntou Brás interrompendo o silêncio entretanto instalado.
- Terra e água amigo. E algum tempo também,  claro. Respondeu Gonçalo. 
Gomes de Sá aproveitava o jantar para viajar através do tempo, montado nos cinco sentidos. Aquele peixe no forno sabia-lhe àquela sensação de desprendimento total que só sentimos quando somos crianças,  a total ausência de paredes ou barreiras. Cheirava-lhe ao colo da sua mãe,  ou a um eterno jantar de amigos.
- E então vocês estão a pensar ficar até quando por aqui?  Inquiriu Gonçalo. 
- Tu queres lá ver, ainda agora chegaste já 'tás a despachar o pessoal? Acho que gosto mais do Chico. Acho não , tenho a certeza.  Brincou Brás. 
- Nada disso, era mais para fazer conversa, o que já deu para perceber que não é bem o meu forte. Por mim podem ficar o tempo que quiserem. 
- Isso é que é falar, até merece um brinde. De qualquer maneira obrigado mas amanhã seguimos caminho que a Croácia ainda é longe.
Levantaram a mesa mas pousaram-na de seguida e retiraram apenas o que estava sobre ela. Depois tiraram à sorte quem iria lavar a louça e a sorte decidiu que Brás seria o eleito.  E foi bem decidido porque Brás até tinha bastante prática na coisa e despachou aquilo como se nada fosse.
De seguida juntou-se aos outros, que o esperavam no alpendre para um digestivo e dois dedos de conversa sob a lua cheia. Conseguiam ouvir as marés vivas em rebuliço lá longe e o vento a ziguezaguear por entre as árvores em redor da casa.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

estórias de encantar - correrias desenfreadas

Pararam junto à Praia do Moinho de Baixo, no preciso momento em que começou a chover torrencialmente por aquelas bandas. O vento soprava lá fora, fazendo-se sentir quando por vezes abanava o carro com tal veemência que este parecia querer sair do chão. O rebentar das ondas estremecia o ar em rugidos tenebrosos, que viajavam quilometros por vezes,  transportados pelo vento imperioso.
- Não querias Natureza? Aqui a tens. Disse Gomes de Sá em tom de brincadeira. 
Brás fechara os olhos para desfrutar em pleno daquele banquete de sensações, ou melhor, daquele celestial concerto, magistralmente interpretado pela orquestra dos elementos pensava. Mas não abria a boca para não interferir na caótica melodia. 
- Por acaso há por aqui alguma coisa que se beba ó Brás? Com o devido grau alcoólico,  se é que me entendes. 'Tou sim Brás, 'tás aí? Insistiu Gomes de Sá.
- Ó cum canário, vai chatear a tua prima meu! Vê lá atrás na mala, no saco azul se não está uma garrafa de Jim Beam, pode ser que te ajude a fechar essa matraca.  E a mim a aturar-te. Disse finalmente Brás,  e lá tentou , sem efeito, piscar o olho.
- Está aqui meu menino,  achei o aquecimento central.  Gritou Gomes de Sá empunhando a garrafa,  já a correr para dentro do carro para fugir da chuva.
- Ou a chucha, como é conhecida por alguns. Retorquiu Brás. 
Gomes de Sá regressou ao interior com a garrafa e ligou o rádio. Assim ficaram durante um tempo a partilhar calmamente o bourbon e a deitar conversa fora,  como tão bem sabiam fazer.
- Ouve lá,  quem é que, no seu perfeito juízo, mete o Miguel Veloso a jogar? Com aquele pandeiro que mal se arrasta só se for para fazer sombra a algum colega que precise de se refrescar. Dizia Brás. 
- O Paulo Bento havia de ser preso. E o barbeiro dele também caralho.  Respondia Gomes de Sá. 
- Foda-se ó Gomes,  tu sabes que um gajo é amigo,  e tu és meu amigo. Daqueles que um gajo sabe que é amigo-amigo, porque um gajo tem muitos amigos né? 'Tás a perceber? Perguntou Brás. 
- O quê,  mas era para perceber? Por momentos até pensei que estivesses a falar croata. Ironizou Gomes de Sá perante a semi-embriaguez do amigo.
De repente, Brás abriu a porta do carro e correu pela areia molhada de braços abertos, deixando para trás a porta aberta e os sapatos.
- Eu fodi a tua mãe. Eu não preciso da misericórdia de nenhum Deus porque eu sou feliz. Gritava de olhos postos no céu enquanto dançava descalço debaixo da tempestade.
- Chupa Goldman Sachs,  avalia agora a taxa de risco dos meus enormes colhões. Gritava do fundo dos seus pulmões enquanto baixava as calças, sem nunca parar de dançar. 
Gomes de Sá acabou por sair do carro, eventualmente contagiado pela energia que o cercava. Juntou-se a Brás que rodopiava de braços abertos, como fazia quando era criança, até cair no chão na sua praia natal em Navtat. 
- Experimenta, vais ver que é, no mínimo,  libertador. Disse Brás com os olhos a brilhar.
- Já vi que sim, não sei se o tenho dentro de mim mas não custa nada tentar.
- O que é que tens a dizer em tua defesa? O que é que tens a dizer ao teu todo poderoso Deus de todas as coisas?
- Somos todos Deuses aqui em baixo. E Jesus tinha caspa. Lançou Gomes de Sá timidamente.
- Podia ter corrido pior.  Brincou Brás. 
- Mas também podia ter corrido muito melhor,  admito que já é um começo. E que tal voltarmos para o carro?
Regressaram ao carro, ensopados até aos ossos,  e trataram de vestir roupas secas. Ligaram o rádio e recostaram os bancos ao máximo para conseguirem uma posição razoavelmente confortável,  dentro das circunstâncias, para dormirem. Passava no rádio o Alabama Song  quando adormeceram.
Gomes de Sá acordou com os primeiros raios de Sol, muito benvindos depois daquela noite tempestuosa. Olhou para  Brás, que dormia profundamente no banco do lado,  e decidiu não o acordar. Saiu e foi directo à beira mar, onde deixou a roupa na areia e deu um mergulho na água fria que o fez imediatamente acordar dos efeitos da anestesia, administrada pelo dr. Jim Beam na noite anterior.
Sentou-se na areia a observar o oceano e a actividade de alguns grupos de gaivotas que partilhavam a praia com ele àquela matutina hora. Sentia-se leve, como se um enorme peso tivesse sido aliviado das suas antes doridas costas. Não sabia, nem queria, explicá-lo,  apenas aproveitar aquela sensação de leveza que percorria o seu corpo, das unhas dos pés à ponta dos cabelos.
Eis senão quando Brás passa a correr desvairado, entrando mar adentro de rompante com espampanante e ruidosa atitude, salpicando tudo à sua volta. Deu três ou quatro braçadas e deixou-se ficar a boiar enquanto olhava o céu imenso, o azul infinito,  o mesmo tecto que o abrigava aqui e na Croácia.
- Já comia qualquer coisa. Deve ser do ar da praia que me abre o apetite,  porque em princípio grávido não devo estar. Disse ele pensando em voz alta para ver se Gomes de Sá estava em sintonia.
- Podemos ir até à aldeia ver se conseguimos qualquer coisa, mas vou já avisando que não deve haver muitos turistas por aqui nesta altura do ano.
- Por mim tudo bem, eu até nem estava interessado em comer turistas, quer dizer pelo menos não no sentido literal. Mas olha que uma tosta mista até que marchava.
- Ai não,  não marchava.
Saíram do estacionamento e dirigiram-se à vila com os estômagos a reclamar de fome.  A meio do caminho Brás reparou que os seus sapatos não estavam no carro e tiveram de regressar à praia para os resgatar.
Mais tarde, na vila, estacionaram o carro e revistaram minuciosamente todos os cantinhos onde pudessem encontrar moedas perdidas, debaixo dos tapetes, nos espaços entre as portas e os bancos e mais onde se conseguissem lembrar. Juntaram o suficiente para dividirem uma tosta, e talvez ainda sobrasse para beberem qualquer coisa os dois.
Hipnotizados pelo cheiro a pão quente entraram num café e instalaram-se numa mesa à janela, uma das muitas mesas disponíveis uma vez que o café estava vazio. Brás pegou no jornal e desfolhou-o com displicência,  talvez em busca de algo diferente.
- Nada de novo. Concluiu enquanto pousava o jornal na mesa.
- Cheira-me só isto. E olha só o aspecto do pão destes senhores Brás!
- Dá para ver que por aqui não brincam com a comida não senhor. Só por causa disso já nem quero uma tosta mista, quero vinte pães com manteiga a estalar.
- Queres queres.
Foram atendidos por Francisco, Chico para os amigos como gostava de se apresentar. Um alfacinha apaixonado pelo Meco, o que não lhes era difícil de compreender,  que montara ali o seu negócio há dez anos, tentando recuperar a sua ligação à Terra através daquela padaria local.
Chico preparou-lhes a refeição, serviu-os, puxou de uma cadeira e sentou-se à mesa com eles, como se estivesse em casa diante dos seus amigos de sempre. Contou-lhes da sua aventura e daquele sonho tornado realidade à custa de muitas horas de sono perdidas com um daqueles empregos burocratas que lhe recheava a conta bancária mas o esvaziava a ele próprio.  Sempre muito direitinho,  encaixotado em gabinetes com vistas deslumbrantes,  apertado em gravatas e punhos de camisa do mais fino corte. Sempre o sorriso posto enquanto rodeado de delirantes e inflacionados egos no mundo do compra e vende, das aquisições e das fusões,  dos lay-offs, dos outsourcings e das grandes decisões na ponta de uma caneta.
Mundo que deixara para sempre,  desejando a todos que se fundissem bastante. Trocara-o agora pelo mundo da água e da farinha,  onde podia assistir em primeira mão ao produto do seu trabalho,  tocar-lhe, sentir-lhe o peso e o valor.
- Então e vocês estão a pensar ficar por cá quanto tempo? Perguntou Chico aos seus dois novos amigos.
- Se queres que te diga nem éramos para estar aqui, mas sim já a caminho da Croácia, por mais estranho que possa parecer. Respondeu Gomes de Sá,  que acabou por ter de resumir a triste sucessão de eventos que era aquela viagem, já antes de começar, muito graças ao intermitente cérebro de Brás.
Quando terminaram o café  Chico convidou-os para ficarem em sua casa  durante o resto do tempo que passassem no Meco e eles não viram razão para não aceitar. Regressaram à praia de estômago aconchegado e instalaram-se no imenso areal, rodeados do mais puro e absoluto silêncio,  sem interferências desnecessárias,  sem correrias desenfreadas,  sem usurpação de espaço, apenas e só o colo da Natureza onde apoiar a cabeça.
- Para onde correm as manadas? E será que quando lá chegam, se é que algum dia chegam, se apercebem disso? Ou continuam apenas a correr porque é só o que conhecem? Questionou Brás sentindo-se mais uma vez alinhado com o Universo.

sábado, 13 de setembro de 2014

estórias de encantar - o troco

Continuaram para Norte via Sesimbra,  onde descobriram entre o mar e a serra, uma vila piscatória de encantos mil que trazia a Brás um cheirinho da sua terra natal Navtat. O mar de águas cristalinas, rico em vida, salpicado de cores e as gentes morenas de peles endurecidas pelo sal e pelo sol faziam-no sentir-se em casa.
- Está decidido, jantamos por aqui. Afirmou Brás assertivo.
- Então mas ainda agora almoçámos!  Exclamou Gomes de Sá. 
- Não há problema, fazemos tempo, damos uma volta pela vila, depois vamos até à praia e damos um mergulho, relaxamos um pouco e 'tá feito.
- 'Tá tá. E dinheiro para o jantar? Não sei se sabes o que é,  aquela coisa que atiraste ao mar no Portinho da Arrábida, não sei se estás a ver.
- Não há-de ser por isso, trouxeste a guitarra agora só tens de lhe dar uso. A ela e ás unhas que tens para tocá-la, ou vais deixá-la trancada na mala do carro durante toda a viagem? É só esperar que apareça um grupo de turistas. Tu tocas enquanto eu demonstro todo o meu esplendor como bailarino.
- Tu bailarino?  Cheira-me que ainda vamos ter de pagar a alguém para assistir a tamanha tragédia,  mas não custa tentar.
- Foda-se, estás a desdenhar da minha famosíssima veia de bailarino contemporâneo. Disse Brás enquanto ondulava os braços e arqueava as costas tentando transmitir a imagem de um golfinho a nadar no Sado.
- É mesmo isso, não ensaies mais que está perfeito. Agora é só eu me lembrar dos acordes do "Saber  a mar" dos Delfins e estão reunidas as condições para a ruína total. Ironizou Gomes de Sá disposto a tentar pôr em prática mais um mirabolante plano de Brás.
- Como é que um país tão pequeno pode conter tantas pequenas maravilhas esquina sim esquina não? Perguntou Brás. 
-Olha que a Croácia também não é muito maior e é igualmente intrigante e apaixonante. 
- Talvez tenhas razão. De qualquer modo somos uns sortudos por estarmos aqui.
Foram descendo até ao mar, em direcção à Praia do Ouro, onde estenderam as toalhas e deram um mergulho,  sentando-se depois a degustar um dos tais cigarros marroquinos de Brás.  Enquanto fumavam divagaram sobre esses pequenos países que tinham tudo para ser ricos e prósperos,  e que na realidade o eram, mas que eram entendidos como pobres,  como era o caso de Portugal e da Croácia. 
- Não sei que raio nos poderá faltar ó Brás,  temos tudo. Terra fértil,  um mar imenso, gente humilde e capaz. Talvez não tenhamos petróleo ou diamantes,  mas raios, isso são coisas que não matam a fome percebes?
- Se percebo, a maior riqueza está nas pessoas my friend.  E nisso posso atestar, como forasteiro que sou, que toda a riqueza dos cofres dos maiores impérios combinada não chegaria para comprar a alma de um verdadeiro lusitano. Ou sequer a sua palavra. 
O Sol já se punha no horizonte e a Lua assumia o seu turno no encadeamento do dia quando lentamente adormeceram, embalados pelo som das ondas do mar, um após o outro.
Acordaram já noite cerrada,  espantados por terem dormido tanto tempo, e subiram até à vila para procurarem um lugar onde comer.
- Que horas são isto ó Gomes? 
- Não faço ideia, aguenta aí que eu já te digo.  Deixa lá ver, foda-se! Onze e meia, espero que ainda haja algum restaurante a servir a esta hora.  Resmungou Gomes de Sá. 
- Então não há-de haver. Retorquiu Brás sempre optimista. 
Encontraram uma pequena tasca ainda aberta e cuja cozinheira estava ainda disponível para os servir.
Sentaram-se à porta com a guitarra e pousaram no chão um chapéu onde, se tudo corresse conforme o planeado,  as pessoas deixariam algumas moedas que dariam na melhor das hipóteses para pagar o jantar. Na pior não dariam para nada e teriam de se contentar com umas latas de sardinha com molho de tomate que eram a única coisa que restava no farnel, uma vez que os cigarros marroquinos tinham a particularidade de lhes abrir o apetite.
Passado meia hora tinham acumulado cerca de quinze cêntimos e começaram a desesperar, mais Gomes de Sá porque Brás acreditava sempre que o Universo nunca o iria deixar ficar mal.
- Não dá para jantar mas já dá para comprar uma pastilha para os dois.  Então e agora génio?  Ironizou Gomes de Sá. 
- E agora não faço ideia,  se pudesse sacava uma nota do olho do cu mas se é coisa que nunca resultou não era agora que ia resultar. Ou então é só abrir os braços e esperar que me caia uma nas mãos.  Respondeu Brás no preciso momento em que uma nota trazida pelo vento lhe aterrava na mão aberta.
- Viste? Isto foi o Universo a dar-me o troco. E  agora vamos jantar?
Entraram e descobriram que era dia de caldeirada de peixe lá no sítio.  Sentaram-se e ficaram à espera a salivar, aliciados pelo cheiro a salsa fresca acabadinha de cortar. Mal tiveram tempo de aquecer as cadeiras e já estavam a ser servidos pela dona Albertina que nem lhes deu hipótese de escolha ou menu porque aquele era o prato do dia, único e exclusivo. 
- Cheira-me só isto Gomes.  E olha-me para este prato,  dá vontade de mergulhar neste mar de sabores e cores apurado ao longo de gerações pelo saber de um povo. Se o mar e o fado tivessem uma criança, essa criança seria a caldeirada. Até porque às vezes as noites de fado também acabam em caldeirada. Divagou Brás. 
- Eu acho que tu bateste com a cabeça, com força, em algum lado quando eu não estava a ver, só pode. Mas lá que está perfeita não posso negar. Replicou Gomes de Sá. 
- Achas que ficamos por aqui hoje?
- Não sei, não me parece mal. Ou podemos estacionar no Meco e passar lá a noite, o que achas?
- Pode ser. Mas olha que eu não vou andar por lá com os tomates ao sol a dar, a dar, como vim ao Mundo 'tás a ouvir? 
- Estou a ouvir e até agradeço e acredito que mais gente agradeça imensamente que não o faças. Está decidido então,  é Meco não é? 
- Siga mon ami, joli pipi, ainda aqui estamos? 

estórias de encantar - sem um tostão furado

Chegados a Porto  Covo,  onde fizeram um desvio para um café matinal, seguiram pela faixa de costa que se estende entre a Praia do Salto, onde o mar se agitava em ondas que, com o vento certo, rebentavam em perfeitas formas tubulares ao se aproximarem da costa, e a praia de S. Torpes de ondas compridas e intermináveis,  ladeada por encostas rochosas e vizinha de uma inusitada central termo-eléctrica, num constante braço de ferro entre a Natureza e os feitos dos homens.  Que a Natureza vencera claramente naquele caso.
- E então Brás,  bem sei que não é a Croácia mas que me dizes boss? 
- A única coisa que me ocorre dizer é que ainda bem que não viemos pela A2.  E que já me podias ter mostrado isto antes. De resto nem sei que te diga.
- Nunca me ocorreu, às vezes ando tão assoberbado com os males da sociedade globalizada que me esqueço que este pequeno país tem o particular poder de nos surpreender a cada momento, vezes sem conta. Mesmo quando não lhe damos a devida importância. 'Tá no Ir? 
- Por mim...
Gomes de Sá inalou profundamente pela última vez aquele ar salgado e acelerou em direcção a Tróia,  já com todos os sentidos focados no almoço. 
Uma vez em Tróia apanharam o barco,  quase vazio.  Gomes de Sá olhava em volta e recordava com satisfação os dias em que ficava  horas na fila só para chegar ao barco, inventando aventuras nas matas circundantes, nunca perdendo de vista o seu pai que estoicamente resistia dentro do carro àquelas intermináveis horas de espera.
Desligou o motor e recostou-se no banco a saborear aquele doce e mareio embalo que lhe era tão familiar. Saíram do carro e dirigiram-se para o convés onde foram recebidos por uma paisagem a que nem em sonhos poderiam fazer justiça,  por muito que tentassem. Mais uma vez um rio, correndo incessantemente para o mar onde desaguava numa idílica baía rodeada por encostas verdejantes e pimpilantes de vida.
De quando em vez um grupo de golfinhos mostrava-se a quem atravessava o rio com  espontâneas brincadeiras e acrobacias.
Gomes de Sá olhou para Brás e esboçou um comentário, que não teve hipótese de terminar porque Brás se virou para ele dizendo: 
- Eu sei Gomes, eu já percebi. E agradeço que estejas disposto a partilhá-lo comigo. 
Gomes de Sá não respondeu, limitou-se a admirar a paisagem.
Estavam já a aproximar-se de terra e foram para o carro prepararem-se para sair. Quando atracaram apressaram-se a encontrar um sitio onde almoçar bem, o que em terras de peixe fresco e do chôque frrite não é de todo difícil. Sentaram-se numa pequena esplanada, mesmo ao lado do grelhador para facilitar a vida ao único empregado, que era por sua vez também o patrão. Começaram por beber um Moscatel de Setúbal para abrir ainda mais o apetite e decidiram-se por uma grelhada mista, de peixe claro, a qual  deitaram abaixo enquanto calmamente bebiam um vinho verde à temperatura ideal.
No fim Brás pagou a conta com uma nota que tirou de trás da orelha esquerda.
- Olha lá ó Brás,  nunca pensaste pôr o dinheiro no banco como as pessoas normais? Perguntou Gomes de Sá. 
- Eu contava-te a história dos bancos nos últimos 100 anos ó Gomes mas depois de uma refeição destas, num sítio como este, era capaz de me cair mal.
Respondeu Brás olhando-o de alto a baixo com olhar reprovador.
- Vive a vida Brás,  essa guerra não é tua.
- Eu vivo, eu até viro tudo do avesso e arraso com  tudo à minha volta, sempre ao máximo.  Só não sei  quantas gerações mais, depois de nós, poderão fazer o mesmo.
Agradeceram ao cozinheiro,  que era o mesmo que o empregado de mesa e patrão, e entraram de novo no carro fazendo planos de ir directos a Lisboa. 
Gomes de Sá decidiu mais tarde fazer um desvio e passar na Serra da Arrábida, uma vez que estavam tão perto.  Encostaram o carro no alto da encosta,  com vista para a surreal baía natural. Saíram do carro esmagados com a energia que os envolvia, vinda das pedras,  do mar e das árvores. Aproximaram-se do precipício e ficaram a observar embasbacados o infinito oceano, embalados pelo turpor alcoólico consequência de um almoço bem regado. 
- Se isto não é suficiente para preencher a alma de um homem de contentamento diz-me então o que poderá ser, isto? Questionou Brás enquanto atirava ao ar um maço de notas que desapareceu lá em baixo no oceano.
- Lindo! Outra vez Brás? Bela hora para o teu cérebro decidir parar. Outra vez. Mais lindo ainda vai ser ouvir a explicação que vais dar acerca de como pensas chegar à Croácia,  a três mil e quatrocentos quilómetros daqui se bem te lembras,  sem um tusto no bolso.
- Ups... Se calhar deixei-me levar pelas emoções.  Sabes Gomes, quando encontro lugares assim como este,  quase encantados,  sinto-me envolvido num abraço com a Natureza, que me preenche muito para além do que alguma vez julguei possível. Com certeza muito mais do que qualquer outro bem que eu possa adquirir com dinheiro. De qualquer modo é tarde de mais, os peixes que se divirtam, que vão às compras ou coisa do género. 
- Tudo bem. Mas isso não explica com vamos chegar à Croácia de bolsos vazios.
- Vive a vida Gomes.  Disse Brás piscando o olho esquerdo,  porque o direito não conseguia e acabava sempre por piscar os dois ao mesmo tempo passando completamente despercebido. 

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Um pouco isto

E na mesa do meu quarto sou menos reles, empregado e anónimo, escrevo palavras como a salvação da alma e douro-me do poente impossível de montes altos vastos e longínquos...

Fernando Pessoa

Ai Margarida


OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFOpdf
Álvaro de Campos

Ai, Margarida,

Ai, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que farias tu com ela?
— Tirava os brincos do prego,
Casava c'um homem cego
E ia morar para a Estrela.
Mas, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que diria tua mãe?
— (Ela conhece-me a fundo.)
Que há muito parvo no mundo,
E que eras parvo também.
E, Margarida,
Se eu te desse a minha vida
No sentido de morrer?
— Eu iria ao teu enterro,
Mas achava que era um erro
Querer amar sem viver.
Mas, Margarida,
Se este dar-te a minha vida
Não fosse senão poesia?
— Então, filho, nada feito.
Fica tudo sem efeito.
Nesta casa não se fia.
Comunicado pelo Engenheiro Naval
       Sr. Álvaro de Campos em estado
                de inconsciência
                         alcoólica.
1-10-1927
Álvaro de Campos - Livro de Versos .  (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.
 - 70.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

estórias de encantar - marés vivas

- Foda-se ó Brás de vez em quando parece que te pára o cérebro.  Disse Gomes de Sá ainda meio a acordar.
- Quem me dera. O pior é que 'tá sempre a bombar, ainda há bocado me deitei e passado meia hora 'tava de pé,  fresco que nem uma alface.  Não sei o que se passa.  Replicou Brás.
- O que se passa é que tu bates mal e não consegues parar sossegado.  Desconfio que se arranjar maneira de te ligar umas baterias ao cu por dez segundos consigo ter electricidade à borla para o ano todo cá em casa. Nem sei como é que conseguiste dormir meia hora sem te explodir a cabeça de inquietação. 
- Olha que eu não 'tou a gozar, ando com um formigueiro nas costas que não me deixa parar quieto, uma sensação de ter alguém a empurrar-me,  só não sei para onde. Acho que devíamos fazer uma pequena viagem,  alinhas nessa? Estamos em Setembro,  isto por aqui vai morrer de qualquer maneira e até já sei para onde vamos.  O que dizes?
- Digo que primeiro tens de me dizer o sítio, que eu não vou assim às cegas com um gajo que uma vez me ligou para irmos jantar a Lisboa e fui acabar a trabalhar num Freak Show em Berlim durante três meses com uma mulher barbuda, dois anões e um papagaio perneta a fazer reinterpretações de Shakespeare.
- Não me digas que ainda estás ressentido com isso, continuo a achar que até correu muito bem. Mas tenta lá adivinhar para onde vamos, aposto que vais gostar. 
- Sei lá,  a uma hora destas,  não faço ideia.  Sagres? Porto? Feijó?
- Não te estás a esforçar,  mais uns quilometrozitos, isso quase nem se pode chamar uma viagem.
- O.k. quantos quilometrozitos mais?
- Nada de especial, uns três mil e poucos mais. Croácia meu amigo, o melhor país do mundo. Trau,  e agora quem é que é o boss?
- Nunca pensei que o dia chegasse em que ias dizer alguma coisinha de jeito ó Brás,  devo dizer-te que estou até um nadinha emocionado. Sem dúvida a melhor coisinha que já te ouvi propor nos últimos tempos, só não sei se tenho guita para isso.
- Tranquilo, eu financio a cena toda, só tens de vir e aproveitar a viagem. E conduzir claro, porque eu só tenho carta de bicicleta.
- 'Tá feito então,  quando é que tás a pensar em ir?
- Por mim é só dar uma salto à casa, encher a mochila e está a andar.
- Ok, então eu já te apanho por lá. Vê se não te esqueces de nada porque eu desta vez não volto atrás como é costume.
- Mais oui mon ami. Gritou Brás já a pedalar na sua bicicleta a todo o gás em direcção a casa. Quando chegou reparou que tinha perdido a sobrancelha esquerda pelo caminho e voltou atrás para procurá-la. Seguiu exactamente pelo mesmo caminho,  sempre atento ao chão para ver se a via, acabou por encontrá-la enrolada num dos raios da bicicleta a tremer de frio e meio enjoada de tanto girar. Guardou-a no bolso para a aquecer um pouco e pedalou de novo até casa. Preparou a mochila e foi até à tasca buscar mantimentos e deixar um aviso na porta para os clientes habituais. Organizou um cabaz com conservas, presunto, pão e outras iguarias e colou na porta um papel onde podia ler-se "Volto já". Trancou tudo e passou em casa de Mark Snuggels, de onde saiu com uma pequeno papel com uma morada que guardou no bolso das calças. 
Quando chegou a casa Gomes de Sá batia na porta, que se queixava e bem porque a casa até tinha campainha e Brás não era surdo por isso não havia necessidade de ser violento. 
- Como é que é Brás 'tás pronto? Perguntou Gomes de Sá contagiado em 1° grau pela inquietação do amigo.
- É só apanhar a mochila e 'tá no ir. Respondeu Brás sentindo um arrepio subir-lhe pelas costas acima até ao cérebro,  onde explodiu em ondas eléctricas que o conectaram ao universo, como se ele próprio fosse uma espécie de antena a receber e a reenviar energia  pura, matéria celestial. Algo lhe dizia que aquela era a direcção por que esperava.
Entrou de novo e agarrou na mochila, confirmou que tinha tudo o que precisava,  deu uma volta por casa para ver se se lembrava de mais alguma coisa que pudesse fazer-lhe falta e saiu. Entrou no carro e seguiram viagem. 
- Então isto vai ser assim.  Disse Brás sacando de um mapa, entusiasmado como sempre. Vamos directos a Madrid,  depois seguimos para Barcelona,  a seguir Montpellier,  Marselha e por aí afora.  Quando quisermos paramos e apreciamos a vista. Que dizes?
- Por mim tudo bem, desde que dê para passar em Lisboa primeiro.
- Ok, murmurou Brás fingindo-se desiludido mas sorrindo por dentro como que festejando uma pequena vitória. 
Decidiram ir directos a Lagos e daí subir até Lisboa pela Costa Vicentina,  sem agenda nem hora marcada para sair ou chegar. Podiam sentir o Inverno a chegar no vento que entrava pelas janelas e no céu que escurecia mais cedo do que estavam já habituados pelo Verão.  O mar agitava-se lá em baixo fazendo adivinhar as marés vivas de Setembro, em que se revoltava e quebrava a monotonia das águas calmas e serenas do Sul e se mostrava em todo o seu poder.
Mais tarde, com o cair da noite,  começaram a sentir fome e decidiram parar junto à foz do rio Mira para abastecer com uma feijoada de búzios e umas tiras de moreia frita. Para acompanhamento um jarro de tinto com Vila Nova de Milfontes como pano de fundo, na outra margem do rio.
Brás não conseguia tirar os olhos do céu,  iluminado como nenhum outro que conhecera por milhões de estrelas brilhantes.
- Foda-se.  Deixou ele escapar como quem acaba de levar um murro no estômago.
- Pois. Intrometeu-se Gomes de Sá. É o Alentejo boss, nem sabes se te hás-de vir ou borrar as cuecas não é? Disseram-me isso uma vez e penso que se aproxima bastante daquilo que sinto debaixo deste céu.
- Eu por mim já não saio daqui hoje.
- Na boa, com um saco-cama passa-se bem aqui uma noite.
- Cacete! Eu bem me estava a parecer que me tinha esquecido de alguma coisa.
- Sem stress, amanhã passamos na vila e compras outro. Por hoje vais ter de te orientar,  dorme no carro, cobre-te com arbustos, tapa-te com areia, o que quiseres.
- Com esta paisagem eu até durmo é todo nu na areia.
- É vai ser lindo quando a dona Rosa e o ti Isalindo chegarem de manhã para abrir o estaminé.
Brás fez sinal à senhora que estava por trás do balcão que se dirigiu à mesa com dois copos e uma garrafa de aguardente e os serviu antes de pegar numa caneta e começar a fazer a conta na toalha de papel. Ele sacou um maço de notas de dentro da meia direita e pagou com prazer. Estavam contentes, preenchidos no corpo e na alma por aquela refeição temperada com a paixão de quem ama o que é da sua terra. Andaram até à beira mar para ajudar a digerir e sentaram-se na areia enquanto Brás enrolava um dos seus cigarros marroquinos.  Fumaram-no enquanto desfrutavam da magia daquele lugar na boca do rio, onde o tempo parecia ter parado. No ponto certo, onde o ponteiro dos minutos roça suavemente a perfeição,  sem a incomodar.  Um silêncio pacificador preenchia o ar, salpicado aqui e ali por ruídos causados pela bicharada que povoava as redondezas.
Ali, o rio chegava finalmente ao seu destino,  para onde corria e continuaria a correr incessantemente, enquanto fosse rio. Inquieto, a chegar ao fim mas sempre a regressar ao início, uma e outra vez. Ali sentiram a paz aconchegá-los enquanto se deixaram adormecer, sem resistir,  sob aquele tecto estrelado.
Acordaram na manhã seguinte com areia acumulada nos mais recônditos orifícios dos seus corpos, deram um mergulho e seguiram para a vila, do outro lado da ponte, onde Brás foi à procura de um saco-cama enquanto Gomes de Sá tratou de os abastecer de croissants recheados de uma famosa pastelaria local. Continuaram para Norte e decidiram seguir até Tróia e apanhar o ferry para Setúbal porque Brás só conhecia o caminho por autoestrada. 

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Pézinhos de lã

Dez minutos para conquistar o mundo...
Se eu quisesse até podia. Mas eu nunca quis.
E se fosse para ir para onde é que eu ia no fundo?
Afinal não há um manual para se ser feliz.
E eu  sem  um mapa quase  que me perdia.
Estou aqui por um triz.
Cinco minutos para conquistar o mundo...
Ai se eu quisesse o que eu não faria.
Com certeza tudo o que ainda não fiz.
E mais o que viesse e o que pudesse vir, sem molde nem matriz.
Um minuto para mudar o mundo...
E eu aqui a olhar para o meu nariz.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

estórias de encantar - pão quente

Eu tenho ficado calado, e só Deus sabe o que me tem custado com tanta incongruência,  mas isto foi a gota de água. Reservada sociedade? No meu tempo namorava-se à janela, cantava-se o hino quando se chegava à escola,  as saias tinham comprimento imposto por lei e até uma coisinha tão insignificante como um isqueiro tinha de ser declarada às autoridades.  Cambada de Madalenas é o que estes miúdos são hoje em dia. Pff, reservada sociedade escreve-me esta besta sabendo de antemão que quem o vai ler em voz alta sou eu. E a seguir o quê? Vai dizer-me que o seu maior desejo é a paz no mundo a Miss Simpatia 2014. Se eu não estivesse desempregado havia de ver onde é que eu lhe enfiava a narrativa.
 Mas adiante, chegou a casa meio a cambalear com a ajuda do álcool e da pança prestes a rebentar, o que lhe perturbava o equilíbrio fazendo-o inclinar-se para a frente e complicando-lhe por isso a travagem . Passou à porta mas só conseguiu parar três casas à frente,  fez marcha atrás com muito custo e estacionou no segundo degrau das escadas enquanto procurava a chave.  Acabou por encontrá-la no último bolso onde a procurou já a tentar fugir outra vez para o primeiro. Agarrou-a pelo pescoço para lhe acabar com as manias e apontou-a ao buraco da fechadura, uma, duas, três,  quatro vezes até acertar. Pensou que o melhor seria chegar a fechadura uns centímetros para baixo mas, logo de seguida mudou de ideias e tirou a porta. Adormeceu em cima do tapete da entrada com os dentes cravados no degrau, que se sentia extremamente desconfortável com aquela situação uma vez que Gomes de Sá era senhor de invejável e resistente dentadura.
Passado meia hora virou-se para o lado e continuou a dormir, deixando no degrau dois caninos e um incisivo. Brás aproximou-se sorrateiro, para não fazer barulho,  encostou a bicicleta no alpendre, entrou em casa e sentou-se na cozinha, sacou do saco com pão quente acabado de fazer que trouxera da padaria do Custódio e passou-lhe com urgência uma faca com manteiga que derreteu ao toque no pão ainda fumegante. Sentia-se a regressar, no tempo e no espaço, até Navtat,  uma pequena cidade costeira trinta quilómetros a sul de Dubrovnik,  onde todas as manhãs o seu pai chegava a casa depois de mais uma noite de trabalho acompanhado de, nada mais nada menos do que pão quente. Que partilhavam enquanto punham a conversa em dia e se lambiam de prazer com aquela haute cuisine à base de farinha, água e sal. Depois despediam-se porque só voltavam a encontrar-se no dia seguinte.
Tal como Zé do Pipo também o pai de Brás era pescador,  daí aquela cumplicidade com tudo o que viesse do mar, quase a sua segunda casa. Onde encontrava conforto num país distante,  podia ,  se quisesse, instantaneamente encurtar a distância com um simples mergulho na água salgada.
Empanturrou-se de pão e foi até à entrada para acordar Gomes de Sá que dormia numa posição muito pouco confortável,  agachou-se para o acordar sem grande e desnecessário alvoroço e reparou que guardava na mão aberta um pequeno brinco, que pegou e pousou gentilmente na bancada da cozinha.
Encheu um balde com água que lhe despejou inteiro sobre a cabeça, o que o fez levantar tão rápido que parecia que tinha molas nos pés. Mal se levantou encaixou logo duas bofetadas de cima para baixo e da esquerda para a direita que o deixaram mais acordado do que cinco latas de Red Bull.
- Bom dia. Disse Brás.