Ao final da tarde dirigiram-se ao café de Chico, que os esperava para o jantar.
Quando chegaram Chico retirava para um tabuleiro a última fornada de pão daquele dia. Usava uma mistura à base de lenha de eucalipto para alimentar o pequeno forno, o que dava ao pão um aroma e um sabor muito próprios, uma espécie de assinatura do autor como gostava de dizer.
Chico suava com o calor que emanava do forno e com a energia despendida naquele árduo processo, mas sorria como uma criança enquanto virava os pães no tabuleiro para ver se estavam a seu gosto, avaliando o tamanho e a consistência. Sempre pensando naquilo que poderia eventualmente melhorar na perseguição do auto-imposto objectivo de criar o pão perfeito.
- Provem aqui isto e depois digam-me o que acham. Este tem passas... E este pinhões. Disse ele com os olhos a brilhar enquanto partia com as mãos o pão e o partilhava ainda fumegante.
Os dois amigos não se fizeram rogados, até porque estavam esfaimados à conta da maresia e dos cigarros marroquinos, e atacaram furiosamente o pão. Mas mal o puseram à boca estacaram-se na sua euforia e abrandaram os sentidos, forçados a travar por aquela explosão de sabores e texturas. Podiam sentir a massa arejada e fofa, o tempero perfeito, a crosta crocante que estalava à primeira dentada, um sabor a lenha, um travo a paixão e saberes ancestrais que aquele pão guardava dentro de si.
- Hum. Acho que até soltei uma pinguinha, preciso de um cigarro. Disse Brás ainda de olhos fechados a saborear o pão de passas.
- Sim senhor Chico, merecias um prémio por este pão. Mas não era um prémio qualquer, tinha de ser tipo um Nobel do Pão ou coisa assim do tipo. Concordou Gomes de Sá.
Seguiram Chico até sua casa, a poucos minutos dali. Quando chegaram foram recebidos por Pantufa e Pipoca, os dois cães rafeiros de Chico que os esperavam ao portão. No alpendre Timóteo, o gato, espreguiçava-se vagarosamente por baixo de um banco comprido feito de paletes. A seu lado Zara, a gata, afiava as unhas nas pernas de uma mesa, também ela feita de paletes. Pendurada na parede por cima da mesa uma guitarra, com marcas de uso, traços de guerra que mostravam que era mais do que um mero objecto decorativo.
Gomes de Sá desaparecera entretanto pelo jardim adentro, guiado pelo cheiro a alecrim, tomilho e alfazema que o vento gentilmente depositara nos seus sensores olfactivos. Ao redor da casa cresciam todo o tipo de ervas, frutos e legumes. Percorreu lentamente o terreno, deixando-se acordar pelo cheiro a terra molhada até regressar novamente à entrada da casa.
- Nada mau, bela horta amigo. E também gostei das aromáticas, és tu que cuidas? Perguntou a Francisco.
- Não, é o Gonçalo, o meu companheiro. Quer dizer, eu dou uma ajuda mas ele é que tem os dedos verdes, tudo o que ele planta cresce. Já eu sempre que tento semear alguma coisa é uma tragédia.
Entraram em casa e deixaram os sapatos à porta, Francisco tratou de instalá-los e apresentar-lhes o resto da casa. Deixou-os no sótão renovado por ele e por Gonçalo, que era agora o quarto de hóspedes, indispensável para quem estava longe de casa e gostava de receber os amigos. Os que conhecera desde sempre e os que encontrara ontem, que tinham em comum a energia que os atraía e fazia com que se cruzassem por vezes nas suas órbitas. Pontos comuns diriam alguns.
Francisco pegou numa cesta e foi até à horta ver o que podia usar para o jantar enquanto Gomes e Brás aproveitaram para se acomodarem e se passarem por água doce para tirar o sal.
Gomes de Sá correu para a casa de banho para ser o primeiro a tomar duche porque Brás demorava sempre uma eternidade com cantorias e figuras ridículas em frente ao espelho. Tomou duche, vestiu-se e saiu para o alpendre onde a noite já se tinha instalado e o silêncio era apenas quebrado aqui e ali por um ou outro mais resiliente grilo. Pipoca e Pantufa apressaram-se a vir cumprimentá-lo efusivamente, desaparecendo depois a correr pelo jardim afora. Mais tarde Timóteo acabaria também por se apresentar, sem grandes confianças, roçando-se apenas nas suas pernas ao passar por ele.
Pegou na guitarra azul e sentou-se com ela no banco comprido, sentiu-lhe o peso e passou-lhe as mãos suavemente ao longo da caixa, seguindo as suas curvilíneas formas. Pousou-a no colo e tocou na primeira corda para lhe conhecer a voz, depois tocou na segunda, e a seguir na terceira e por aí adiante até chegar à sexta, apertando ou relaxando a tensão até chegar à afinação desejada. Quando finalmente acertou deixou-se ficar à espera que a guitarra lhe desse o sinal para começar, porque aquele não era um processo de anexação violenta mas sim de consentida aproximação. Para tocar era preciso o consentimento da própria guitarra, havia mesmo histórias de guitarras que se recusavam a tocar nas mãos de uns e de outros e que só se mostravam em todo o seu potencial no colo do seu designado cúmplice.
Sem dar por ela começou a dedilhar as cordas com a mão direita enquanto as pressionava ao longo do braço com a esquerda. Não fazia ideia do que era um Dó, ou qualquer outra nota por sinal, e a guitarra agradeceu-lhe por poder caminhar por outros caminhos, fugir ao triste destino dos mesmos acordes repetidos vezes sem conta e tantas outras vezes ouvidos na boca de outras guitarras. Ficaram por ali algum tempo, que lhes pareceu curto porque tinham tanto para conversar mas na realidade tinham passado quase duas horas e de dentro de casa vinha já um cheirinho que lhe inundava as fossas nasais.
Brás balançava-se na rede saboreando a melodia com Zara ao colo quando Francisco abriu a porta e disse:
- Está tudo pronto, já falei com o Gonçalo e deve estar aí a chegar. Por isso meninos é lavar as mãozinhas e ir para a mesa.
Gonçalo chegou minutos depois com um ramo de flores na mão escondida por trás das costas. Faziam três anos que haviam dado o nó, oficialmente porque estavam juntos há mais de dez. Mas naquele mesmo dia, há três anos atrás, trocaram alianças diante da família e amigos, com tudo o que achavam ter direito.
Dirigiu-se a Francisco e estendeu a mão revelando o enorme ramo.
- Amores Perfeitos! Exclamou Francisco.
- Sim, meu amor. Porque também os há. Respondeu Gonçalo a sorrir.
Chico apresentou o seu companheiro aos dois amigos e conduziu-os a todos em rebanho para a mesa, porque o peixe começava a perder a graça. Deixou-os na mesa para ir tirar o tabuleiro com o sargo pescado no dia e os legumes colhidos horas antes.
Pousou o tabuleiro na mesa, sentou-se e esperou que todos se servissem para reclamar para si o merecido prémio pelo esforço e dedicação que pusera naquela refeição, a sua parte favorita, a cabeça do peixe. Que desmantelou minuciosamente até sobrar apenas um monte de espinhas.
- Bem, nunca pensei que uma cenoura pudesse saber tanto a cenoura, se é que isto faz algum sentido. O que é que lhes metes? Perguntou Brás interrompendo o silêncio entretanto instalado.
- Terra e água amigo. E algum tempo também, claro. Respondeu Gonçalo.
Gomes de Sá aproveitava o jantar para viajar através do tempo, montado nos cinco sentidos. Aquele peixe no forno sabia-lhe àquela sensação de desprendimento total que só sentimos quando somos crianças, a total ausência de paredes ou barreiras. Cheirava-lhe ao colo da sua mãe, ou a um eterno jantar de amigos.
- E então vocês estão a pensar ficar até quando por aqui? Inquiriu Gonçalo.
- Tu queres lá ver, ainda agora chegaste já 'tás a despachar o pessoal? Acho que gosto mais do Chico. Acho não , tenho a certeza. Brincou Brás.
- Nada disso, era mais para fazer conversa, o que já deu para perceber que não é bem o meu forte. Por mim podem ficar o tempo que quiserem.
- Isso é que é falar, até merece um brinde. De qualquer maneira obrigado mas amanhã seguimos caminho que a Croácia ainda é longe.
Levantaram a mesa mas pousaram-na de seguida e retiraram apenas o que estava sobre ela. Depois tiraram à sorte quem iria lavar a louça e a sorte decidiu que Brás seria o eleito. E foi bem decidido porque Brás até tinha bastante prática na coisa e despachou aquilo como se nada fosse.
De seguida juntou-se aos outros, que o esperavam no alpendre para um digestivo e dois dedos de conversa sob a lua cheia. Conseguiam ouvir as marés vivas em rebuliço lá longe e o vento a ziguezaguear por entre as árvores em redor da casa.