terça-feira, 28 de outubro de 2014

Isto não é um aviso

Que se fodam os meus lindos olhos.
Pois que aqui os arranco e piso.
E desvisto a pele que me veste, letra por letra para que não restem dúvidas.
E me mostro como sou por trás do que está á vista, não mais do que preconceito, palas nos olhos de quem olha sem ver.

sábado, 25 de outubro de 2014

estórias de encantar - uma noite em branco (1)

Arrancaram de Belém e só pararam em casa dos pais de Gomes de Sá, um rés do chão algures a meio caminho entre Lisboa e Sintra.
Muita coisa mudara por ali desde que emigrara para o Sul, havia mais prédios, mais carros, mais polícias armados. Mas acima de tudo o que realmente sentia diferente eram as pessoas, caminhavam de olhos no chão e de ombros caídos, derrotadas pela  corrida de ratos em que se tornara a vida nos subúrbios. Vidas encaixotadas e amontoadas em apertados apartamentozinhos. Acordar, trabalhar, dormir, acordar, trabalhar, dormir. Acordar, trabalhar, dormir.
 Era ali, naquela famigerada linha de Sintra, que se pagavam muitas das contas do país,  muitos dos irreais objectivos traçados por uma mão cheia de políticos em febre eleitoral eram pagos ali, em sobrepopulação, em abandono, em desilusão e raiva de quem convive de perto com o privilégio mas vive de migalhas. Migalhas de tempo, de educação,  de vida. Ali a massa que move a capital, mãos e braços que trabalham, por migalhas, para quem, muitas vezes, não mexe um dedo.
 Uma coisa que não tinha mudado era a janela entreaberta por onde se evadia um aroma que lhes despertou de imediato o apetite.  Gomes de Sá encostou o dedo à campainha e carregou duas vezes, velhos hábitos enrustidos por longos anos de vivência urbana, e aguardou. Passado alguns segundos,  e se tudo continuasse na mesma, a porta do prédio abrir-se-ia com dois toques de trinco. Brás nem teve tempo de fazer cerimónia porque ainda nem tinha um pé dentro de casa e já lhe estavam a oferecer um aperitivo. O que vale é que não era dado a cerimónias e aceitou de bom grado enquanto ia espreitando o que havia para o jantar. Ficaram-se pela cozinha a pôr a  conversa em dia ao mesmo tempo que iam pondo a mesa.
Recordavam pequenas aventuras, memórias que Gomes de Sá preferia sinceramente esquecer para todo o sempre, mas não podia porque regressavam para o atormentar em todas as reuniões de família.  Episódios no mínimo caricatos, em que encontrava sempre forma de fazer as coisas à sua maneira, que não seria melhor ou pior do que a de qualquer outro, apenas diferente. E quase sempre acabava em gargalhada. Com exceção daquelas vezes em que terminava em verdadeira tragédia. Uma tragicomédia,  em resumo, este nosso pequeno protagonista.  Não muito longe do que é a própria vida,  quando realmente nos decidimos a vivê-la. O proveito retira-se do risco que se assume ao fazê-lo,  pode-se passar pela vida sem se ter vivido um único dia por medo de arriscar.
 Não era o caso de Sá que acumulava aventuras e desventuras suficientes para umas boas horas de conversa. Que continuou já depois de jantar, em redor de uma garrafa de whisky que ia aos poucos perdendo o seu dourado tom enquanto passava de copo em copo. Quando se levantaram da mesa tiveram de ficar encostados às cadeiras por uns instantes para se restabelecerem. 
- Chiça, durante o resto da semana só bebo sumo de capim verde, que é para desintoxicar. Disse Brás a desapertar o cinto das calças. 
- E eu vai ser só a copos de água até ao fim do mês.  Devolveu Gomes de Sá.
Rebolaram para a rua, onde foram recebidos por uma Lua que enchia o céu e abafava a luz dos candeeiros de rua de tão perto que parecia estar. Deram três voltas ao quarteirão para desmoer,  enfiaram-se no carro, o que não se provou tarefa fácil de tão inchados que estavam, e arrancaram em direção a Lisboa, destino Bairro Alto. 
Deixaram o carro no Cais do Sodré, ao lado daquele sítio que fica do lado esquerdo de quem vem de baixo, e foram subindo até ao Adamastor para partilharem a vista e um cigarro bem temperado com a tal especiaria. 
- Devíamos arranjar um pouco de erva, a ver se começamos a cortar no tabaco que só faz é mal. Sugeriu Gomes de Sá. 
- Por mim na boa.
- E melhor ainda era deixarmos de fumar e começar a misturar isto nos iogurtes, ou na salada. Acho que era melhor para ti, na tua condição. 
- Minha condição?  Vai na volta e isto é só gases ó Gomes. Por mim não vejo razão para não experimentarmos.  Mas também não há de ser uma ganza que fumo uma vez por outra que vai ser o problema.
 Seguiram para o Bairro,  onde se deixaram perder no mar de gente. Saltavam de tasca em tasca, por entre ébrias e intrigantes personagens, seguiam a corrente mas desviavam-se das más ondas. Iam ao sabor da Lua, sem plano traçado, sem agenda social, apenas e só uma noite para saborear. Serpenteavam por entre a multidão quando, sem saberem bem como, foram desaguar à Travessa da Espera, onde se deixaram ficar, mudos e calados, a absorver a energia.
 Margarida regressava a casa, após uma bem regada despedida de solteira, quando  literalmente deu de caras com Gomes de Sá depois de tropeçar num paralelo mais saliente.
Ela disfarçou o sorriso,  mas não a satisfação por o reencontrar.
Ele engoliu em seco e balbuciou algumas palavras,  atordoado pela sua presença mas tentando manter a postura. 
 Brás ofereceu-se para ir buscar qualquer coisa que se bebesse e desapareceu no meio da multidão,  não regressando mais. Coisa que nem ele nem ela repararam porque não tiravam os olhos um do outro nem por um segundo, não fosse um deles desaparecer também de repente para parte incerta.
 Os lábios exasperavam por tocar-se,  as trémulas mãos por sentir a pele ardente com incendiário desejo. Sem dizer uma palavra subiram apressadamente as escadas que davam para o apartamento de Margarida, onde entraram de rompante, fechando tão abruptamente a porta que me deixaram do lado de fora sem qualquer hipótese de narrar o que quer que fosse que se passasse do outro lado entre os dois.
 Quanto a Brás não mais regressou à Travessa da Espera,  restando-me apenas esperar que Gomes de Sá decida descer para continuar com a estória. Podia agora contar-vos daquela vez em que apanhei gonorreia com uma prostituta filipina de setenta anos, ou até entreter-vos com um elaborado número de sapateado verbal, coisa em que sou, aliás,  exímio. Mas não vou fazê-lo, vou manter a calma e aguardar serenamente que alguém apareça para dar sentido, e algum movimento já agora,  à narrativa. Se calhar é melhor sentar-me enquanto espero. Irra, que raio de nome mais adequado tem esta travessa.  Porque parece que é só o que por aqui se faz, esperar. Que a gasolina desça, que o ordenado suba, que a vida melhore, que a justiça funcione, que a temperatura global não aumente. Realmente, mais vale esperar sentado. Aqui parece-me bem, com licença. Raios. Parece que fazem de propósito,  acabadinho de alapar o cagueiro e agora é que o morcão decide sair para a rua. C'um  caralho que até se me soltou a pronúncia do Norte. Bem, o melhor é mesmo seguir com isto, não vá eu perdê-lo de vista outra vez.
 Gomes de Sá flutuava no ar, e os seus pés não mais tocaram o chão nas horas seguintes. Margarida não o acompanhava, tinha coisas importantes para fazer no dia seguinte,  segundo ela própria. Sá tirou o telemóvel do bolso,  olhou-o por uns segundos e voltou a guardá-lo.  Embrenhou-se de novo pelas ruas apertadas, sem saber bem para onde ia mas seguro de que iria lá chegar.  Quando passava em frente a uma montra  reparou que tinha a camisola do avesso.  Parou um pouco, olhou de novo e percebeu que afinal não era a camisola que estava do avesso mas sim ele próprio.  Resolveu o assunto e lá foi, pelo Bairro adentro a flutuar, o que era ótimo porque pelo menos assim não andava a tropeçar nos paralelos. Às tantas decidiu que um chá poderia ajudá-lo a basear-se e entrou num pequeno sítio onde atrás do balcão se podiam ver vários frascos com ervas de todos os tipos.  Percorreu o espaço com os olhos em busca de uma mesa livre, acabando por descobrir Brás sorrindo num canto, agarrado a uma chávena fumegante. Sentou-se junto do amigo e pediu um básico chá de cidreira. Trocaram olhares por instantes e ficaram a partilhar o silêncio enquanto consumiam a reconfortante bebida. Gomes de Sá não conseguia evitar o sorriso, os olhos sorriam, as orelhas sorriam, o dedo pequenino do pé direito rebolava de contentamento. Sentia um formigueiro pelo corpo todo, pura electricidade.
Brás fez sinal com a cabeça, levantou-se e saiu, Gomes de Sá seguiu-lhe os passos. Caminhavam apressadamente,  influenciados pelo ritmo acelerado pela urgência de coisa nenhuma que os rodeava na selva de betão, desviando-se aqui e ali de uma ou outra alma errante a contas com o excesso de álcool.  Conseguiram a custo libertar-se do labiríntico e superpovoado aglomerado de ruelas e desceram a Calçada da Glória a correr, movidos pela Lua cheia.
- O último a chegar lá abaixo é um político em campanha.  Gritava Brás. 
- Então podes começar a preparar o teu discurso, otário. Respondia Gomes de Sá ao mesmo tempo que o ultrapassava.
-  Não foi bem isso que eu disse sr. Doutor. Retorquia Brás,  retomando o seu lugar na frente.
- Isso é pura demagogia excelentíssimo. Replicava Gomes de Sá correndo ainda mais rápido.
E assim, num fósforo e a descer, foram da Glória à Liberdade.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Com licença

Se eu tivesse uma fisga não ia aos pardais, mas antes a apontava aos abutres e demais parasitas. Não faço fretes, nem cerimónia. Não é que não tenha pedigree, isso é outra estória, questão de parcimónia, simplifico logo existo. Onde é que eu já ouvi isto? É que ouço tanta coisa vinda de tantos artistas que me custa a distinguir o que é sumo e o que é lixo. Bicho a coisa 'tá feia, chega a hora de roubar 'tá tudo fora da toca mas quando a cena é ajudar... zumba,  cabeça na areia. Tudo Robins dos Bosques de boca, Zés do Telhado de fancaria. Se eu pudesse escolher ser qualquer outro animal acho que preferia. Mas só me resta ser este ser inteligente, coisa que, sinceramente, ninguém diria. 

domingo, 12 de outubro de 2014

Um sofá e um dia de chuva

Espectacular espectáculo espectaculoso. Espectacularizador espartilho bem apertado à volta do cérebro. Encurtando as vistas, qual cabra cega dando voltas sobre si. Manobras de diversão, luzinhas a piscar, passadeira vermelha estendida à incongruência. Senta-te e aprecia o irónico desfile da letargia.
Regala os teus olhos com fumo e espelhos, porque é só o que terás se assim escolheres.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Listen carefully, I shall say this only once.

The one that lays beneath, carrying the weight forward, the underdog, that's who i am. But show me the alpha dog and i swear i will bite his head off. I am here to be unbored,  so unbore me or let me be.
Don't rearrange me, don't reeducate me, because i'm ten feet tall and several miles wide. We're all born of two mothers, women are the alpha on this pack.  I will humbly bow before mother Nature, and, a thousand times pay tribute to my own mother, but i will not be bent by the unjust laws of men.
I am the one just passing by. Mearly watching,  mearly living,  mearly trying to understand. But not ever so on the verge of being nearly blind, nearly extinct, nearly ignorant.

Tanta dor

Mudaria alguma coisa se eu dissesse que tenho o Qi de uma batata doce? E que a cada palavra escrita equivale meio litro de suor, e a cada nota da guitarra anos de vida.
Que por acaso sou estúpido, mas que não escrevo ao acaso. Sai de mim, literalmente, tudo o que passo para o papel. E é parte de mim que permanece, fora de mim, porque assim entendo a partilha, de dentro para fora, sem esperar nada em troca.
Bem ou mal, isto é o que eu sei fazer e o que tenho para oferecer, não posso parar, não posso parar-me, porque estou vivo em palavras que escrevo como se não houvesse amanhã. Porque talvez não haja. Porque escrever é sonhar. E sonhar, lá está, é viver.

Claro como água

Retiro tudo o que disse.
Ai não dá?  Então reitero tudo o que disse.
Ou melhor, repito o que não disse e engulo o que jamais direi.
Se já o atarracado Napoleão tinha manias de grandeza do alto do seu metro e meio, não poderia eu por vezes sentir-me encafuado aqui no pequeno burgo, numa semi existência adquirida a crédito? Empurrado daqui para ali, ajustado às necessidades dos mercados, indexado ao PSI20. Vivendo em horas, que mesmo sendo minhas, me são emprestadas e pagas com vida, naquele que é o maior negócio do século,  do milénio, da História, a divisão dos homens em classes sociais.
Quem distribui o privilégio? Quem avalia a casta de cada Um? Quem decide quem sobrevive e quem fica pelo caminho? E serão os mais aptos ou os com maior provisão bancária a sobreviver? 
Tudo questões, inquestionavelmente, que me trazem todo o tipo de problemas. Porque sempre foi assim e não era agora que ia mudar, porque não serei eu concerteza a mudar a situação,  porque é demagogia afirmar que se pode e deve mudar para melhor, etc. e tal.
Claro que, se estivermos na fila para comprar um IPHONE ou o novo BMW, mudar não dá jeito nenhum. Óbvio que, se estivermos à espera do nosso dia de usufruir deste desequilíbrio para subir também na vida, não importa como, não estaremos minimamente interessados em mudar. Claro como água.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

O Ego ao Centro

Fruta da época para a imprensa cor de rosa.
Fresca e sumarenta posta de merda de imitação.
Cá para mim é só caroço.  E polpa, nenhuma,
Apenas a afirmação. Do vazio. Somente a confirmação. Do nada.
Afinal de que real cona saem todos estes privilegiados?
Os dos Louis Vuitton, os dos oito carros na garagem, os do champanhe que se diz chompánhe,  os dos bombons e dos bons tons, os do ó querida não faça força que se me torce o zizi.
Certamente não roçaram com as orelhas numa cona vulgar como todos os outros ao nascer. Deslizaram para o Mundo por uma espécie de pipi dourado abaixo com certeza.
Merda de imitação, merda de imitação,  merda de imitação.
Nem sequer um cagalhão.  Pura ficção,  areia para os olhos do povo.
Ao menos que fosse ópio, que sempre se nos atordoava o senso comum.
Mas é apenas areia, que arranha a alma por dentro.
Pedaços de lixo que voam no vento. Com o ego ao centro.

domingo, 5 de outubro de 2014

estórias de encantar - fácil de dizer, difícil de conseguir

Emborcaram com vontade as bifanas,  acompanhadas pela essencial imperial, e deixaram-se ficar sentados a ver o tempo passar. Quando se cansaram de estar parados,  levantaram-se com a intenção de pagar a conta ao balcão e continuar o passeio a pé por Lisboa, mas quando lá chegaram é que se lembraram que não tinham como. Deram dois passos atrás e enfiaram-se num canto a ruminar numa solução para o problema. Já tinham comido e bebido,  por isso devolver  os itens consumidos, pelo menos nas mesmas condições em que foram entregues,  estava fora de questão. Dinheiro não havia, portanto pagar também não estava nos planos.  Só restava uma saída: a fuga subtíl . Teriam de se evaporar dali, sair de fininho como dois ilusionistas,  sem que ninguém se apercebesse.  Podiam simplesmente começar a correr, mas isso não tinha qualquer charme, e já não eram nenhuns miúdos, pensavam.
A certa altura Brás reparou num grupo de turistas japoneses de câmaras em punho e fez sinal a Gomes de Sá com os olhos, indicando que deviam juntar-se a eles. Brás pegou no telemóvel e apontou para o amigo enquanto o ia posicionando junto ao aglomerado de turistas, como se estivesse a preparar o cenário para uma fotografia.
- Mais para trás,  agora um pouquinho para a direita,  só mais dois passos para trás,  isso, aí está ótimo. . Comandava Brás. E Gomes de Sá seguia as instruções à risca. Quando chegaram suficientemente perto do grupo, enfiaram-se para dentro da bola de gente e deixaram-se ficar lá pelo meio. Os japoneses olhavam para eles de soslaio,  interrogando-se sobre quem seriam  aquelas duas personagens.
Às tantas Brás lembrou-se que se calhar era melhor falar inglês para disfarçar e virou-se para Gomes e atirou:
- Like in the street,  on the fringe you know? Very lots yes. 
Gomes de Sá,  surpreendido e confuso com aquela manobra, respondeu de imediato, como pôde:
- Yes, in the backside.  On the waves is the rains like.
Quando vislumbraram um espacinho para fugir deram corda aos sapatos e meteram pela Travessa das Mónicas. Com os calcanhares a bater na nuca só pararam no Jardim do Tabaco.
- Ouve, já não corria assim desde o liceu. O melhor é afastares-te que acho que me vai saltar um pulmão pela boca. Disse Gomes, ofegante.
- Por acaso... Mas diz lá que não foi brutal. Ufa, até me vou sentar um bocadinho. Altercou Brás, segundos antes de cair pelo chão inanimado.
Gomes de Sá acercou-se do amigo e tentou colocá-lo numa posição confortável, enquanto olhava em volta à procura de um lugar onde pedir um copo de água e um pouco de açúcar.  Brás abrira os olhos entretanto  e tentava acalmar o visivelmente transtornado amigo.
- Calma Sá,  já passou.
- Foda-se Brás! Estava a ver que me dava aqui uma coisinha má.  Aguenta aí que eu vou buscar-te um copo de água com açúcar. E outro para mim já agora. Isso foi da corrida, não estás habituado.
- Isto não vai lá com água e açúcar amigo, talvez com um par de vodcas. Mas com água não estou a ver.
- Que conversa é essa Brás? Se estiveres mal passamos num hospital. Não custa nada e mais vale prevenir.
- Hospitais é que não, eu só preciso de um tempinho para respirar.
- Ouve Brás, tu sabes que eu te respeito e que podes contar comigo mas, ou me dizes o que se passa, ou vamos a um hospital. Porque senão eu juro que te deixo aqui sozinho.
- Senta-te lá aqui um bocadinho,  respira fundo e conta até dez. Sabes o que eu gosto em ti Gomes? É o facto de eu poder confiar que não me vais nunca julgar por alguma coisa que eu faça.
- Não sei se estou a gostar do rumo que esta conversa está a tomar.
- E sabes que mais? É esse teu despenteado cabelo que te denuncia. Tu não estás minimamente preocupado com o que os outros pensam de ti. Logo, deduzo que não percas muito tempo a pensar em julgar alguém. Já dizia o meu avô que os gadelhudos eram de confiança e que tínhamos de estar de olho era nos penteadinhos.
- Um gajo inteligente esse teu avô. Mas onde, exactamente,  é que pretendes chegar com essa conversa é que eu não estou a ver.
- Calma, lá chegaremos Gomes. Aqui há uns meses andava com umas dores nas cruzes que não me passavam de maneira nenhuma, e olha que eu tentei de tudo. Acunpunctura,  Shiatsu, Reiki, Reiku que é uma mistura de Reiki com Shiatsu, enfim, tudo. E quando nada resultou fui ao médico,  que me mandou fazer uma série de exames, uns mais manhosos que outros, e no fim diagnosticou-me um cancro no pâncreas e dois meses de vida. E a modos que é isto Gomes.
- Foda-se Brás , tu 'tás a gozar com a minha cara, só pode caralho. Mais uma razão para irmos a um hospital.  Há tratamentos para essas coisas, esta merda já não é como antigamente, não estamos no século XIX. Todos os dias se fazem novos avanços Brás. Vamos lá cacete.
- Para? Para me encherem de comprimidos e me proibirem de viver os dias que me restam, que nem sei se são muitos ou poucos Gomes? Ou passá-los numa cama de hospital? Que obsessão é essa em sobreviver à mais que certa morte? Eu espero sobreviver à vida, e isso é coisa que só posso fazer vivendo.  Eu sei que é difícil para ti,  mas eu tenho de saber se posso confiar que não vais insistir nisso dos hospitais.
Gomes de Sá não respondeu porque estava demasiado ocupado a bater com a cabeça numa parede, enquanto repetia até à exaustão a expressão "foda-se Brás", de lágrimas nos olhos.  Esteve ali uma boa meia hora até ser vencido pelo cansaço e voltar para perto do amigo. Ficaram algum tempo sentados a partilhar o silêncio que enchia o ar e o tornava pesado, quase irrespirável por momentos.
Já semi recuperados, subiram novamente à Graça,  onde tinham deixado o carro. Durante horas não disseram uma única palavra,  sentiam-se como se tivessem estado às voltas numa enorme máquina de lavar roupa em modo de centrifugação. Comunicavam através de olhares e acenos de cabeça, Gomes de Sá conduziu-os até Belém,  onde estacionaram de frente para o rio e se deixaram ficar mais um bocado a assimilar e a processar aquela nova realidade com que se deparavam.  Um inesperado desvio que lhes acertara em cheio no meio dos olhos, deixando-os atordoados e dormentes durante o resto da tarde.
Brás enrolava um dos seus cigarros com mistura enquanto deixava o amigo recompor-se do choque. Gomes de Sá lançava-lhe um olhar reprovador,  como que dizendo que não era a melhor ideia.
- Achas mesmo que o melhor para ti é continuares a fumar? Inquiriu.
- Se quiseres posso deixar de o fazer, e encher-me com todo o tipo de outras merdas. Carregadinhas de químicos,  que me tirem as dores e me deixem dormente ao ponto de não conseguir usar o cérebro,  a babar-me para a minha bata de hospital.
- Pronto, pronto. Já entendi.  Credo Brás,  escusas de dramatizar assim tanto, ao nível de novela da TVI.  Realmente, mais vale isso do que andares a encharcar-te com comprimidos e merdas desse género.
- Relaxa Gomes, há coisas que estão fora do nosso controlo. Não podemos salvar toda a gente. Faz a tua viagem, saboreia-a,  espreme-a bem espremida, até à última gota. Não deixes nada para trás mas move-te para a frente.  E, sobretudo agora, não julgues, não ponderes,  não ajuízes. Esquece a razão e a lógica e abraça o momento. Porque é o que temos.
- Fácil para ti de dizer, mas difícil para mim de conseguir.  Acho que preciso de um pastel de nata, ou três.
Dirigiram-se ao outro lado da marginal, onde se encontravam os famosos pasteis de Belém. Quando pararam o carro Brás pegou numa garrafa de água e numa meia e deslocou-se para junto de um semáforo à espera que alguém parasse. Assim que um carro parou  lançou-se na sua frente, despejando a água no pára brisas com uma mão e passando a meia com a outra, sujando mais o vidro do que propriamente limpando. De seguida dirigiu-se ao condutor com a mão estendida em forma de concha. E, para grande espanto de Gomes de Sá,  que observava do carro, conseguiu uma moeda. Seguiu-se mais um carro, e outro e outro. Até que finalmente acumulara moedas suficientes para meia dúzia de pasteis.  Atravessaram a estrada para se sentarem num banco no jardim dos Jerónimos a degustar a tão especial iguaria.
Gomes de Sá recordava os bons momentos passados naquele mesmo jardim com a sua primeira bicicleta. As sucessivas quedas, resultado de uma longa batalha contra as rodinhas, e a derradeira conquista de finalmente poder pedalar livremente por todo aquele imenso jardim, que era do tamanho do Mundo para si naquela altura. Não tinha fim, podia correr e saltar horas a fio sem nunca sair dali, sempre a coberto da atenção dos seus pais,  com um mimo sempre à mão no caso de uma queda mais espalhafatosa.
- Hoje jantamos em minha casa.  Disse convicto.
Respirou fundo,  largando ali o enorme peso que carregava à horas, tentando alinhar-se de novo com o Cosmos.

sábado, 4 de outubro de 2014

estórias de encantar - uma Big Band, três padres Jesuítas e dois polícias a cavalo

Gomes de Sá acordou a meio da noite com a estranha sensação de ainda estar a dormir. Tomou um duche, vestiu-se e depois despiu-se e logo a seguir vestiu-se outra vez, só para ter a certeza. Passou pela cozinha e preparou um café,  que gostava de tomar sem açúcar e assim  para o forte. Saiu de casa e entrou no carro, deu à chave mas não obteve qualquer resposta do motor, que estava ainda meio adormecido e não estava habituado a trabalhar àquelas horas. Tentou uma segunda vez e nada, foi a casa preparou outro café e regressou, abriu o capô e sussurrou um gentil "bom dia" enquanto despejava a chávena para o depósito do óleo. O motor deu uma espreguiçadela e lá despertou. Gomes de Sá entrou no carro e deu novamente à chave, o motor respondeu de imediato e lá seguiram caminho, só parando no Bairro Alto.
Quando lá chegou não se lembrava sequer de ter feito a viagem, estacionou o carro onde conseguiu e entrou pelo bairro adentro sem saber bem para onde ia, mas com passos largos e determinados como se estivesse a ser guiado por uma força estranha. Enfiou a mão no bolso das calças para procurar o pequeno brinco que encontrara no seu carro na noite em que, supostamente,  se encontrara com Margarida,  uma morena que conhecera na praia e que por alguma razão não lhe saía da cabeça. Ao tirar a mão ficou com ela presa numa armadilha para caçar tartarugas anãs do Bornéu, que trazia sempre consigo para o caso de alguma eventualidade. Ao fim de alguns minutos conseguiu finalmente soltar-se.
Abrandou subitamente o passo ao entrar na Rua do Norte, como se estivesse de algum modo mais perto do seu destino. Andava aos ésses seguindo o chão disforme, de pedras negras e gastas, que cobriam as ruas apertadas. Nenhuma delas igual às outras,  e todas essenciais no seu conjunto,  tal como as pessoas que as pisavam. Cabiam todas as cores do Mundo naquele atarracado local no alto da colina. Pegou no telemóvel e desatou a tirar fotografias a tudo o que via, às ruas, aos cruzamentos,  aos graffitis nas paredes, a um cão que roçava o cu pelo chão, certamente para se coçar, a um homem que corria todo nu pelo meio da multidão,  com um cravo na mão a gritar que o seu nome era Tó Zé e que tinha salvo o 25 de Abril. Toda esta azáfama tinha-lhe dado sede e entrou num bar para beber um gin tónico,  bebeu tranquilamente o gin enquanto escolhia as fotografias que mais lhe agradavam e descartava as restantes. Pediu mais um gin para o caminho e saiu de novo para a rua com o telemóvel prontinho a disparar. Ainda chegou a tempo de apanhar uma Big Band que passava, seguida de um pelotão de ciclistas da Volta a Portugal, três padres Jesuítas e dois polícias a cavalo.
Enquanto fotografava surgiu-lhe no canto do ecrã uma placa com a inscrição "Travessa da Espera" e pareceu-lhe o sítio ideal para se sentar, até porque já tinha ouvido dizer que às vezes é melhor esperar sentado. Ficou por ali a observar quem passava, ou melhor, os pés de quem passava porque era o que estava ao nível dos seus olhos. Passavam ténis,  saltos agulha, botas da tropa, sandálias, galochas com olhinhos e boca, pernas de pau, pantufas com orelhas de coelho, enfim, uma ecléctica selecção de calçado variado, acoplado certamente a uma panóplia de gente diferente que coexistia pacificamente naquele lugar.
Às tantas, no meio da multidão de membros inferiores, surgiram umas pernas que lhe eram familiares, cobertas até perto do joelho por um vestido que também não lhe era desconhecido.  Seguiu-as com o olhar no sentido ascendente,  da foz à nascente, passando depois os olhos pelas curvilíneas formas que lhe lembravam uma guitarra perfeita,  continuou a subir até descobrir o negro e longo cabelo que ondulava com a brisa nocturna.
Do alto das torneadas pernas Margarida olhava para ele espantada.
- Ai, Margarida, se eu te desse a minha vida, que farias tu com ela? Lançou ele.
Ela sorriu, mas não muito para não dar a entender que tinha gostado, mas a realidade é que tinha gostado. Sentou-se ao seu lado, na esquina da Rua do Norte com a Travessa da Espera, que ganhava agora um novo e refrescante sentido,  e por ali ficaram à conversa , alternando à vez as idas ao bar para abastecer de gin. Era quase manhã quando ele se lembrou de lhe devolver o brinco.
- Encontrei isto, acho que é teu. Quer dizer, só sei que não é meu, não me lembro muito bem como foi parar ao meu carro. Disse timidamente. 
Ela agarrou-o e puxou-o para ela, espetando-lhe um beijo que o deixou a cambalear à procura de alguma coisa onde se agarrar para não cair.
- Pode ser que isto te reavive a memória.  Disse ela.
- É pá,  se queres que te diga acho que melhorou um pouquinho.  Mas pelo sim pelo não é melhor continuares a tentar.
Ela convidou-o para subir e ele disse que sim sem pensar meia vez, não fosse ela mudar de ideias.  Subiram as escadas a correr, entraram em casa e fecharam a porta com estrondo ao se encostarem a ela. Margarida desapertava-lhe o cinto enquanto ele tentava despir-lhe sofregamente o vestido,  olhavam-se nos olhos, desafiando-se um ao outro, o momento chegara.
- Gomes, ó Gomes. 'Tá a Acordar! Gritava Brás abanando freneticamente o amigo, que dormia que nem uma pedra enquanto se babava e sorria deitado na rede, onde tinha passado a noite à conta dos digestivos que Gonçalo servira sem parar.
- Princesa? Murmurou Gomes de Sá. 
- Deves estar com uma sorte. Não me leves a mal ó Gomes, eu gosto muito de ti. Mas ainda não chega para me tratares assim.  
- Foda-se Brás. 
- Mas o que é que eu fiz agora? Só te vim acordar porque estás aí com essa cara de parvo há pr'aí doze horas, já fui à vila e vim três vezes só para passar o tempo. Trouxe-te o pequeno almoço e tudo.
- E o Chico e o Gonçalo? 
- Há horas que saíram de casa.  Deixaram-te um abraço,  como é que é,  vamos andar? Perguntou Brás impaciente. 
- Só se for já.
Fizeram-se à estrada,  mas saíram a perder porque a estrada chegava bem para eles os dois e deixou-os num estado lastimável,  com alcatrão incrustado por todo o lado. Decidiram então pôr-se a andar, mas descobriram passado pouco tempo que não ia resultar, porque tinham de levar o carro e ainda só tinham percorrido vinte quilómetros e já não aguentavam as dores nas costas. Pousaram o carro na berma da estrada, à sombra de um enorme pinheiro bravo e sentaram-se a recuperar o fôlego. 
Do outro lado do Tejo Margarida saía de casa para uma tarde entre amigas.  Acordara naquela manhã com um sorriso nos lábios para o qual não tinha explicação.  E do qual não conseguia livrar-se de maneira nenhuma,  tentara várias vezes ao espelho, depois do banho, fazer as mais carrancudas expressões, mas sem efeito. Nada do que pudesse fazer parecia ser suficiente para conseguir apagar aquele apalermado sorriso. A verdade é que lhe assentava que nem uma luva.
Sentia-se pronta para desfrutar de um pouco de sol em boa companhia numa das esplanadas de Lisboa. Combinara com Rita e Rafaela no miradouro da Graça e, para manter a tradição,  estava atrasada. Só que ainda não sabia porque não tinha olhado para o relógio,  nem iria olhar durante o resto da tarde. Quando chegou já elas estavam instaladas em amena cavaqueira,  enquanto bebericavam uma imperial voltadas para o Tejo. Tratou de pedir um gin tónico e sentou-se também a contemplar o horizonte. 
Conversaram horas a fio sobre os mais variados assuntos e temas da actualidade,  e da antiguidade também,  porque era uma conversa extremamente abrangente. Às tantas, encetaram uma acesa discussão sobre qual seria o melhor isco a usar na pesca do achigã e não conseguiram chegar a acordo se seria casulo, miolo de pão ou ganso-coreano. Quando os ânimos acalmaram, lembraram-se de subir ao miradouro da Nossa Senhora do Monte para arejar e porque a vista era ainda mais deslumbrante dali.
Quando abandonavam a esplanada, cruzaram-se com os dois amigos que acabavam de chegar a Lisboa,  directos à Graça a pedido de Brás. Mas nem um nem outro repararam e elas lá seguiram enquanto eles se sentavam, precisamente na mesa que elas ocupavam ainda há uns minutos atrás. Brás aproveitou para captar umas fotografias das redondezas enquanto esperavam pelas bifanas.  Gomes de Sá deixou-se ficar,  embalado na sua cadeira com vista para o Tejo. O rio abraçava a cidade, apaziguando o constante e inevitável alvoroço causado por um exército de milhões de formigas em incógnita missão.
Gomes de Sá fez sinal a Brás que as bifanas estavam à espera.