terça-feira, 25 de novembro de 2014

Primeira e última tentativa

Existe esta ideia vazia de que fazer poesia é questão de rimar
Mas, a meu ver, não há nada de mais errado
É, sobretudo e antes de tudo o resto, a ação de remar
Contra a maré,  contra o sentido, contra o fado

Não se baseia na imposição fonética
Mas sim na desconstrução linguística
Na aplicação de uma ideologia estética
E artística. Sendo o seu alvo a perfeição e não a estatística

Senão vejamos:
Numa esplanada sentado estava um jovem croata
Que lendo o jornal se aborrecia
E aborrecido lá ia ferrando o dente num pastel de nata
E não é que rima? Pois, mas não é poesia

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Atualização atualizada da atualidade atual

Na dormência adormecida ressonava baixinho para não incomodar. 
Babava-se em fios reluzentes que escorriam para cima contrariando a incontestável gravidade. Em sonhos esfoliava os entrefolhos da massa cinzenta com areia da praia para retirar o excesso de azeite que teimava em acumular-se-lhe por cima do parietal encurtando-lhe a vista.
Anestesia geral para a mesa sete, e a próxima rodada sou eu que pago. Aconteceram acontecimentos que se provaram relevantes pela sua relevância.  Quem come muito queijo não tem problemas de memória,  tem dores de barriga. Acontece que por vezes aquilo que se ouve não condiz com o que se vê.

sábado, 8 de novembro de 2014

Anda comigo ver os gaviões, na homilia, a afiar as unhas

                                                                                                                                                        O

 Circulava pela direita quando foi surpreendido por três freiras com a cona aos saltos, em sentido contrário roçando a dita pelos hidrantes e gritando impropérios em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Arrembimbou o malho nas três o enconado aprendiz de rabeta. E a cada enrabadela rezava um Pai Nosso e duas Avé Marias o dissimulado lacaio de Baphomet.
Venham a mim as criancinhas que as enrabarei por puro privilégio, gritava o energúmeno, espécie de excremento coberto de ouro. Nos dedos os anéis cheios de merda dos infantes estuprados para apaziguar superstições.
E o porco fodia a eito a puta da razão. Ao ponto do irreconhecimento, deixando-a quebrada, torcida como os cornos de um cabrão. E arreganhava o dente o suíno, contente com a sua posição. Dominante, dominadora, de vil criatura rastejante, da Natureza momentânea desatenção.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Singular

Ilusória e fraudulenta diafonia rangendo os dentes. Rastejante verborreia escorrendo a céu aberto. Rarefeito o ar que outrora regenerava o agora remanescente resquício das horas roídas pela raiva.
Restando apenas o raciocínio irracional, interrompido a espaços por rasgos de relativa lógica.
Irrespeitáveis tratados de guerra, transparentes como muros de betão, selam como pregos cravados no livre arbítrio a ignomínia indisfarçada dos barões. Na ampulheta desmaiada esvaiu-se o tempo que restava na espera descuidada pelo tempo, que esperava. Esfumou-se em nuvens de ópio que não apaziguam os monstros que correm por dentro da matriz. Tarda a hora da reação.

sábado, 1 de novembro de 2014

estórias de encantar - uma noite em branco (2)

A Lua impunha a sua sublime presença, congeminando para, subtilmente como era aliás seu apanágio,  trocar as voltas aos dois amigos que recuperavam o fôlego encostados a uma parede. 
A noite trazia à cidade uma outra perspectiva de espaço,  longe da claustrofóbica azáfama do dia a dia, dos transportes à pinha e dos autómatos em constante procissão. Passearam pela avenida ao sabor do vento, espreitando as montras e divertindo-se a imaginar que utilidade poderiam dar a alguns dos mais inúteis objectos que por lá encontravam à venda.
- Ó Gomes anda cá ver isto. Queres uma mala por três mil paus? Aposto que vale mais do que o teu carro hã?
- E apostas bem.  Imagina lá um gajo pedir um empréstimo ao banco para comprar uma mala destas e depois andar com cinco euritos lá dentro para o mês todo. 
- Não deixa de ter a sua piada. Mas deixa-me que te diga que, num Mundo que pára quando o bolso está vazio, isto roça o criminoso ó Gomes.
- Lá estás tu outra vez Brás. Isto é só para quem pode, não para quem quer.
- Isso quer dizer que há quem possa? Foda-se Gomes, quanto é que tu ganhas num ano? É que se não sabes eu digo-te, pouco mais do que uma mala de uma dondoca. E olha-me para essas mãos,  mais parecem dois troncos de árvore com folha de lixa colada. Quando é que vais abrir os olhos?
 - E de que me adianta abri-los? Eu só quero é que não me chateiem Brás,  não vou ser eu a mudar a ordem das coisas. E, se sempre assim foi, não seria agora que isto ia mudar.
- Quando um acessório de moda vale mais do que o ordenado mínimo de um país não me parece que se possa propriamente chamar a isso ordem. E, se não formos nós, que estamos aqui, quem vai mudar isto? E, se não for agora, enquanto aqui estamos, então quando? 
- Estás com aquele brilhozinho nos olhos de quem vai partir alguma coisa, deve ser o cimento que te está  a afectar os dois neurónios. O que tu precisas é de um banho de Lua, e eu conheço o sítio ideal para isso.
 Zarparam de Lisboa como se estivessem a fugir do fim do Mundo, perseguidos por uma gigantesca onda de betão armado que se aproximava cada vez mais no retrovisor. Gomes meteu pela Marginal, seguindo o Atlântico, que se encontrava pacífico. A maresia trepava pelas janelas e roçava subtilmente os sensores olfactivos, apenas o suficiente para os despertar. O bruído das ondas do mar acompanhava a viagem.
- Mais calmo? Inquiriu Gomes de Sá. 
- Nunca estive nervoso. Respondeu prontamente Brás.
- Respira fundo, sente a maresia, não achas que somos uns sortudos? Estamos em outubro Brás, e sente esta noite que bem podia ser de Verão. Podemos dar um mergulho se quisermos neste mar que não nos larga. Temos terra fértil, boa gente, reconhecemos a grandeza nas pequenas coisas, nos amigos, nas tardes à volta da mesa, no rir até cair. Aqui, no Sul, é que está a riqueza. No Norte estão apenas os ricos, pobres desgraçados que desconhecem o sabor da vida. E o que conhecem é apenas um substituto artificial, uma espécie de qualquer coisa, provavelmente enlatada. Nunca lhes passou pelos lábios o aroma, não conhecem a sensação de estar vivo, de estar aberto  e receptivo ao que não se comanda. Por isso, às "tias" é deixá-las mamá-las em troca de malas, que se dêem a si próprias o valor que acham que merecem. E nós, que sabemos o valor da Lua e do mar, vamos viver que é só o que sabemos fazer.
- É que só faltava o piano Gomes. Acho que o chá não tinha só cidreira lá dentro. Mas, por incrível que pareça,  não deixa de fazer sentido essa salganhada toda que acabaste de dizer. Até vou enrolar aqui uma coisinha que encontrei só por causa dessa.
- Como é que arranjaste tempo e dinheiro para comprar erva?
- Então não é que me tentaram assaltar, nada de especial, até me ia esquecendo de te contar, uns putos que nem mijar a direito devem saber. O que vale é que estavam atochados de whisky e cocaína e a coisa acabou por correr bem para o meu lado. Ainda saquei um saco de erva e este maço de notas, com uma garrafa de mini vazia que encostei às costas do que papagueava mais alto, a fingir que era uma arma. O que é certo é que o bando de hienas dispersou sem deixar rasto, só ficou o papagaio a tremer e a rezar baixinho. Podia ter corrido mal, mas ainda deu para me rir um bocadinho.
- Sabes que te podias ter fodido? Tu bates é mesmo muito mal. Também não é que tivesses grande coisa para roubar.
- Exatamente, mesmo por isso, então vêm roubar um triste como eu? Olha lá bem para mim e diz-me se te parece que estou carregado. Encosta mas é o carro em qualquer lado para provarmos isto.
- Estamos quase, encostamos quando chegarmos.
- Quando chegarmos aonde? Mas temos alguma coisa marcada que eu não me esteja a lembrar?
- É que és mesmo abestúncio, até aos ossinhos. Já nem sei se te estou a levar para o sítio certo, ou melhor, nem sei porque é que  insisto em levar-te seja para onde for.
- Claro que estás, senão não estávamos a caminho. Além disso eu sou como um GPS para as boas vibrações,  sem mim estarias desconectado e como que perdido numa névoa de sentimentos confusos e obscuros, deambulando como um zombie pelos corredores da decadência humana.
- Não és nada exagerado, devias tentar uma carreira na política.
- Chiça, bate na madeira, e já agora lava essa boca com sabão. Diabo seja cego, surdo e mudo.
Ao longe surgia já no horizonte a serra de Sintra, iluminada pela enorme Lua.