segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Com estes dois que a terra há-de comer

Vi os ordenados a descer. E os iates a crescer. Vi as mercearias a fechar. E os Belmiros a aumentar. Vi o Euro a vazar Portugal de gente. E o BCE a esfregar as mãos de contente. Vi a pobreza que por aqui vai. E os barões às compras no Dubai. Vi meio mundo a chorar de fome. E outra metade que tudo consome.
E fora o resto que eu não vi,  nem vejo.
A força de lutar contra as injustiças, sem pudor nem pejo. O querer que vem de dentro, o subconsciente desejo de escapar de areias movediças, a alma em carne viva, o sangue a ferver, o desassossego que rasga a pele com a urgência da resolução, nada disso eu vi, ou vejo, aqui  ou na televisão. Mas espero ainda ver com estes dois que a terra há-de comer.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

O Natal desperta as emoções e, definitivamente, eu não sou o Dalai Lama

Acendam velinhas para as criancinhas. Mas acendam também braços e pernas. E mexam-se, movimentem contas bancárias a favor das criancinhas, e não contra como é  costume. E já agora não  roubem as criancinhas, que já  é  um bom começo e poupa-se um dinheirão em velas.
Tanta gente que passa o Natal sozinha, dizem muito comovidos e tocados e genuinamente afectados. Antes de irem passar a consoada num hotel de 5 estrelas? Com tudo o que têm direito, o caviar, o chompánhe, o sangue das criancinhas, mais os milhões desviados e os tostões furados dos pensionistas. E o que sobrar fica para futebóis, supercarros, superestrelas das mais variadas áreas, casas na praia, crashes da Bolsa, crises financeiras e bolhas imobiliárias. Pelo meio  fica aquela  gente que fica ainda mais sozinha desde que inventaram isto do Natal.
Lá estou eu armado em carapau de corrida, de barriga cheia, no quentinho, a dar para parvo. Não  consigo evitar, é-me natural esta estupidez confesso, não há aconchego que me aconchegue, é  fugaz o sossego em mim, rarefeita a etiqueta e nula a hipocrisia. Nem que metessem três velas no olho e fizessem malabarismo com elas conseguiriam ajudar as criancinhas como todo o dinheiro que circula no Natal poderia fazer.
Por isso, continuem a acender velas, e tirem-lhes fotos com os vossos topos de gama. Assim, pelo menos uma vez por ano, não nos esquecemos das criancinhas.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Ho Ho Ho

Eu nunca vi o Pai Natal. Nem sequer o menino Jesus. Mas vi o Diabo a assar sardinhas num dia de Verão. E, no meio do calor abrasador, por lá não encontrei ninguém que esperava encontrar. Do herói  ao mais mau do que os outros, não  vi nem um, nem  o outro. Do contador de estórias ao mascarado de tudo menos dele próprio, nem num deles eu pus a vista em cima enquanto suava diante do Chifrudo.

Esquizofrénico, eus? Nã.

Apenas tenho em mim todas as dores do universo. De cara colada com todos os sonhos que me abraçam dançando um tango apaixonado.
Em mim tenho tudo o que é. E nada a meio gás. Choro com a mesma paixão com que rio até ás lágrimas, luto com o mesmo fervor com que amo.
Tantas vezes morri de amor, mais que muitas, e outras tantas do mesmo amor renasci. O meu único medo é morrer em vida, estar vivo não estando, tendo na cabeça nada mais do que uma ligeira e inócua corrente de ar.
Que a loucura seja o preço a pagar para se estar vivo se estar são é estar-se morto vivendo.

Ninguém dúvida que seja Natal...

Há  muitos anos atrás, algures na Palestina, nasceu um menino que se viria a tornar um homem influente. Seguido por uns, odiado por outros pelas mesmas razões, apregoou acima de tudo a igualdade entre os homens, para além da cor, do estrato social, da posição. Este homem, de seu nome Jesus, morreu na cruz. Quem o ressuscitou matou a sua revolução, retirou-lhe todo o valor  de ser nem mais nem menos do que um soldado para passar a ser uma espécie  de Rei, uma ilusão,um tranquilizante para acabar com as rebeliões contra o poder imposto, contra os impérios  escravizadores e escravizantes que se baseiam na confiscação dos bens das massas para sustentar as elites, a que deram o nome de religião.
A maior prova de que Jesus não ressuscitou é o chorrilho de mentiras que são as escrituras sagradas.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

A escolha da ilusão

Depois de uma atenta e cuidada análise dos dados dísponiveis e atendendo ao enquadramento geral no quadro internacional actual, em conformidade com o exposto nos artigos 54,73 e 87 do código de comportamento social descabido, venho por este meio informar que está fresquinho.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A obra prima do mestre ou a prima do mestre de obras?

Haveria tanto para dizer sobre os mais variadíssimos assuntos que mais vale não dizer absolutamente nada, nicles, népia,  nestum,  rien, zerinhos...
De algum modo mais ou menos eficaz  X há-de alinhar-se com Z e Y em algum ponto da viagem e a tridimensionalidade trará aos nossos olhos as  inevitáveis evidências camufladas pela monocromia vigente. Nesta terra quem tem um olho é rei mas é a mim que me vêm ao olho, e eu não estou cego, por enquanto. Diz-me com quem andas dir-te-ei se vais preso ou se pagas a caução. Quem te avisa teu assalariado é.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Especificamente falando

Será suficiente se me declarar ausente por tempo indeterminado?
Se houver um motivo contundente que se prenda com uma causa recente não vejo motivo para estar desmotivado. Agora o que não se pode é assobiar para o lado, que isso quase que é pecado. É coisa que me tira o cuidado, fico fulo, marafado, ao invés de andar contente.
E que nunca lhe doa o olho a quem é filho de boa gente. Mas aos parentes da corrupção eminente, e já que a mim não me doi nada, o meu desejo veemente é que andem três meses com a anilha inflamada, e que não lhes passe com nada. Nem comprimido, nem cházinho, nem pomada.
Boa noite e obrigada.

Nem eu sei de que é que sinto saudade

Só a mim me sinto.
Ou será que me sinto só?
Somente a mim me minto.
Ou sinto a minha mente. Só.
Só um momento de absinto em frente,
que me leve no sentido da corrente e me liberte do pó. Que é só o que sinto.
Para além de mim só.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Primeira e última tentativa

Existe esta ideia vazia de que fazer poesia é questão de rimar
Mas, a meu ver, não há nada de mais errado
É, sobretudo e antes de tudo o resto, a ação de remar
Contra a maré,  contra o sentido, contra o fado

Não se baseia na imposição fonética
Mas sim na desconstrução linguística
Na aplicação de uma ideologia estética
E artística. Sendo o seu alvo a perfeição e não a estatística

Senão vejamos:
Numa esplanada sentado estava um jovem croata
Que lendo o jornal se aborrecia
E aborrecido lá ia ferrando o dente num pastel de nata
E não é que rima? Pois, mas não é poesia

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Atualização atualizada da atualidade atual

Na dormência adormecida ressonava baixinho para não incomodar. 
Babava-se em fios reluzentes que escorriam para cima contrariando a incontestável gravidade. Em sonhos esfoliava os entrefolhos da massa cinzenta com areia da praia para retirar o excesso de azeite que teimava em acumular-se-lhe por cima do parietal encurtando-lhe a vista.
Anestesia geral para a mesa sete, e a próxima rodada sou eu que pago. Aconteceram acontecimentos que se provaram relevantes pela sua relevância.  Quem come muito queijo não tem problemas de memória,  tem dores de barriga. Acontece que por vezes aquilo que se ouve não condiz com o que se vê.

sábado, 8 de novembro de 2014

Anda comigo ver os gaviões, na homilia, a afiar as unhas

                                                                                                                                                        O

 Circulava pela direita quando foi surpreendido por três freiras com a cona aos saltos, em sentido contrário roçando a dita pelos hidrantes e gritando impropérios em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Arrembimbou o malho nas três o enconado aprendiz de rabeta. E a cada enrabadela rezava um Pai Nosso e duas Avé Marias o dissimulado lacaio de Baphomet.
Venham a mim as criancinhas que as enrabarei por puro privilégio, gritava o energúmeno, espécie de excremento coberto de ouro. Nos dedos os anéis cheios de merda dos infantes estuprados para apaziguar superstições.
E o porco fodia a eito a puta da razão. Ao ponto do irreconhecimento, deixando-a quebrada, torcida como os cornos de um cabrão. E arreganhava o dente o suíno, contente com a sua posição. Dominante, dominadora, de vil criatura rastejante, da Natureza momentânea desatenção.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Singular

Ilusória e fraudulenta diafonia rangendo os dentes. Rastejante verborreia escorrendo a céu aberto. Rarefeito o ar que outrora regenerava o agora remanescente resquício das horas roídas pela raiva.
Restando apenas o raciocínio irracional, interrompido a espaços por rasgos de relativa lógica.
Irrespeitáveis tratados de guerra, transparentes como muros de betão, selam como pregos cravados no livre arbítrio a ignomínia indisfarçada dos barões. Na ampulheta desmaiada esvaiu-se o tempo que restava na espera descuidada pelo tempo, que esperava. Esfumou-se em nuvens de ópio que não apaziguam os monstros que correm por dentro da matriz. Tarda a hora da reação.

sábado, 1 de novembro de 2014

estórias de encantar - uma noite em branco (2)

A Lua impunha a sua sublime presença, congeminando para, subtilmente como era aliás seu apanágio,  trocar as voltas aos dois amigos que recuperavam o fôlego encostados a uma parede. 
A noite trazia à cidade uma outra perspectiva de espaço,  longe da claustrofóbica azáfama do dia a dia, dos transportes à pinha e dos autómatos em constante procissão. Passearam pela avenida ao sabor do vento, espreitando as montras e divertindo-se a imaginar que utilidade poderiam dar a alguns dos mais inúteis objectos que por lá encontravam à venda.
- Ó Gomes anda cá ver isto. Queres uma mala por três mil paus? Aposto que vale mais do que o teu carro hã?
- E apostas bem.  Imagina lá um gajo pedir um empréstimo ao banco para comprar uma mala destas e depois andar com cinco euritos lá dentro para o mês todo. 
- Não deixa de ter a sua piada. Mas deixa-me que te diga que, num Mundo que pára quando o bolso está vazio, isto roça o criminoso ó Gomes.
- Lá estás tu outra vez Brás. Isto é só para quem pode, não para quem quer.
- Isso quer dizer que há quem possa? Foda-se Gomes, quanto é que tu ganhas num ano? É que se não sabes eu digo-te, pouco mais do que uma mala de uma dondoca. E olha-me para essas mãos,  mais parecem dois troncos de árvore com folha de lixa colada. Quando é que vais abrir os olhos?
 - E de que me adianta abri-los? Eu só quero é que não me chateiem Brás,  não vou ser eu a mudar a ordem das coisas. E, se sempre assim foi, não seria agora que isto ia mudar.
- Quando um acessório de moda vale mais do que o ordenado mínimo de um país não me parece que se possa propriamente chamar a isso ordem. E, se não formos nós, que estamos aqui, quem vai mudar isto? E, se não for agora, enquanto aqui estamos, então quando? 
- Estás com aquele brilhozinho nos olhos de quem vai partir alguma coisa, deve ser o cimento que te está  a afectar os dois neurónios. O que tu precisas é de um banho de Lua, e eu conheço o sítio ideal para isso.
 Zarparam de Lisboa como se estivessem a fugir do fim do Mundo, perseguidos por uma gigantesca onda de betão armado que se aproximava cada vez mais no retrovisor. Gomes meteu pela Marginal, seguindo o Atlântico, que se encontrava pacífico. A maresia trepava pelas janelas e roçava subtilmente os sensores olfactivos, apenas o suficiente para os despertar. O bruído das ondas do mar acompanhava a viagem.
- Mais calmo? Inquiriu Gomes de Sá. 
- Nunca estive nervoso. Respondeu prontamente Brás.
- Respira fundo, sente a maresia, não achas que somos uns sortudos? Estamos em outubro Brás, e sente esta noite que bem podia ser de Verão. Podemos dar um mergulho se quisermos neste mar que não nos larga. Temos terra fértil, boa gente, reconhecemos a grandeza nas pequenas coisas, nos amigos, nas tardes à volta da mesa, no rir até cair. Aqui, no Sul, é que está a riqueza. No Norte estão apenas os ricos, pobres desgraçados que desconhecem o sabor da vida. E o que conhecem é apenas um substituto artificial, uma espécie de qualquer coisa, provavelmente enlatada. Nunca lhes passou pelos lábios o aroma, não conhecem a sensação de estar vivo, de estar aberto  e receptivo ao que não se comanda. Por isso, às "tias" é deixá-las mamá-las em troca de malas, que se dêem a si próprias o valor que acham que merecem. E nós, que sabemos o valor da Lua e do mar, vamos viver que é só o que sabemos fazer.
- É que só faltava o piano Gomes. Acho que o chá não tinha só cidreira lá dentro. Mas, por incrível que pareça,  não deixa de fazer sentido essa salganhada toda que acabaste de dizer. Até vou enrolar aqui uma coisinha que encontrei só por causa dessa.
- Como é que arranjaste tempo e dinheiro para comprar erva?
- Então não é que me tentaram assaltar, nada de especial, até me ia esquecendo de te contar, uns putos que nem mijar a direito devem saber. O que vale é que estavam atochados de whisky e cocaína e a coisa acabou por correr bem para o meu lado. Ainda saquei um saco de erva e este maço de notas, com uma garrafa de mini vazia que encostei às costas do que papagueava mais alto, a fingir que era uma arma. O que é certo é que o bando de hienas dispersou sem deixar rasto, só ficou o papagaio a tremer e a rezar baixinho. Podia ter corrido mal, mas ainda deu para me rir um bocadinho.
- Sabes que te podias ter fodido? Tu bates é mesmo muito mal. Também não é que tivesses grande coisa para roubar.
- Exatamente, mesmo por isso, então vêm roubar um triste como eu? Olha lá bem para mim e diz-me se te parece que estou carregado. Encosta mas é o carro em qualquer lado para provarmos isto.
- Estamos quase, encostamos quando chegarmos.
- Quando chegarmos aonde? Mas temos alguma coisa marcada que eu não me esteja a lembrar?
- É que és mesmo abestúncio, até aos ossinhos. Já nem sei se te estou a levar para o sítio certo, ou melhor, nem sei porque é que  insisto em levar-te seja para onde for.
- Claro que estás, senão não estávamos a caminho. Além disso eu sou como um GPS para as boas vibrações,  sem mim estarias desconectado e como que perdido numa névoa de sentimentos confusos e obscuros, deambulando como um zombie pelos corredores da decadência humana.
- Não és nada exagerado, devias tentar uma carreira na política.
- Chiça, bate na madeira, e já agora lava essa boca com sabão. Diabo seja cego, surdo e mudo.
Ao longe surgia já no horizonte a serra de Sintra, iluminada pela enorme Lua.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Isto não é um aviso

Que se fodam os meus lindos olhos.
Pois que aqui os arranco e piso.
E desvisto a pele que me veste, letra por letra para que não restem dúvidas.
E me mostro como sou por trás do que está á vista, não mais do que preconceito, palas nos olhos de quem olha sem ver.

sábado, 25 de outubro de 2014

estórias de encantar - uma noite em branco (1)

Arrancaram de Belém e só pararam em casa dos pais de Gomes de Sá, um rés do chão algures a meio caminho entre Lisboa e Sintra.
Muita coisa mudara por ali desde que emigrara para o Sul, havia mais prédios, mais carros, mais polícias armados. Mas acima de tudo o que realmente sentia diferente eram as pessoas, caminhavam de olhos no chão e de ombros caídos, derrotadas pela  corrida de ratos em que se tornara a vida nos subúrbios. Vidas encaixotadas e amontoadas em apertados apartamentozinhos. Acordar, trabalhar, dormir, acordar, trabalhar, dormir. Acordar, trabalhar, dormir.
 Era ali, naquela famigerada linha de Sintra, que se pagavam muitas das contas do país,  muitos dos irreais objectivos traçados por uma mão cheia de políticos em febre eleitoral eram pagos ali, em sobrepopulação, em abandono, em desilusão e raiva de quem convive de perto com o privilégio mas vive de migalhas. Migalhas de tempo, de educação,  de vida. Ali a massa que move a capital, mãos e braços que trabalham, por migalhas, para quem, muitas vezes, não mexe um dedo.
 Uma coisa que não tinha mudado era a janela entreaberta por onde se evadia um aroma que lhes despertou de imediato o apetite.  Gomes de Sá encostou o dedo à campainha e carregou duas vezes, velhos hábitos enrustidos por longos anos de vivência urbana, e aguardou. Passado alguns segundos,  e se tudo continuasse na mesma, a porta do prédio abrir-se-ia com dois toques de trinco. Brás nem teve tempo de fazer cerimónia porque ainda nem tinha um pé dentro de casa e já lhe estavam a oferecer um aperitivo. O que vale é que não era dado a cerimónias e aceitou de bom grado enquanto ia espreitando o que havia para o jantar. Ficaram-se pela cozinha a pôr a  conversa em dia ao mesmo tempo que iam pondo a mesa.
Recordavam pequenas aventuras, memórias que Gomes de Sá preferia sinceramente esquecer para todo o sempre, mas não podia porque regressavam para o atormentar em todas as reuniões de família.  Episódios no mínimo caricatos, em que encontrava sempre forma de fazer as coisas à sua maneira, que não seria melhor ou pior do que a de qualquer outro, apenas diferente. E quase sempre acabava em gargalhada. Com exceção daquelas vezes em que terminava em verdadeira tragédia. Uma tragicomédia,  em resumo, este nosso pequeno protagonista.  Não muito longe do que é a própria vida,  quando realmente nos decidimos a vivê-la. O proveito retira-se do risco que se assume ao fazê-lo,  pode-se passar pela vida sem se ter vivido um único dia por medo de arriscar.
 Não era o caso de Sá que acumulava aventuras e desventuras suficientes para umas boas horas de conversa. Que continuou já depois de jantar, em redor de uma garrafa de whisky que ia aos poucos perdendo o seu dourado tom enquanto passava de copo em copo. Quando se levantaram da mesa tiveram de ficar encostados às cadeiras por uns instantes para se restabelecerem. 
- Chiça, durante o resto da semana só bebo sumo de capim verde, que é para desintoxicar. Disse Brás a desapertar o cinto das calças. 
- E eu vai ser só a copos de água até ao fim do mês.  Devolveu Gomes de Sá.
Rebolaram para a rua, onde foram recebidos por uma Lua que enchia o céu e abafava a luz dos candeeiros de rua de tão perto que parecia estar. Deram três voltas ao quarteirão para desmoer,  enfiaram-se no carro, o que não se provou tarefa fácil de tão inchados que estavam, e arrancaram em direção a Lisboa, destino Bairro Alto. 
Deixaram o carro no Cais do Sodré, ao lado daquele sítio que fica do lado esquerdo de quem vem de baixo, e foram subindo até ao Adamastor para partilharem a vista e um cigarro bem temperado com a tal especiaria. 
- Devíamos arranjar um pouco de erva, a ver se começamos a cortar no tabaco que só faz é mal. Sugeriu Gomes de Sá. 
- Por mim na boa.
- E melhor ainda era deixarmos de fumar e começar a misturar isto nos iogurtes, ou na salada. Acho que era melhor para ti, na tua condição. 
- Minha condição?  Vai na volta e isto é só gases ó Gomes. Por mim não vejo razão para não experimentarmos.  Mas também não há de ser uma ganza que fumo uma vez por outra que vai ser o problema.
 Seguiram para o Bairro,  onde se deixaram perder no mar de gente. Saltavam de tasca em tasca, por entre ébrias e intrigantes personagens, seguiam a corrente mas desviavam-se das más ondas. Iam ao sabor da Lua, sem plano traçado, sem agenda social, apenas e só uma noite para saborear. Serpenteavam por entre a multidão quando, sem saberem bem como, foram desaguar à Travessa da Espera, onde se deixaram ficar, mudos e calados, a absorver a energia.
 Margarida regressava a casa, após uma bem regada despedida de solteira, quando  literalmente deu de caras com Gomes de Sá depois de tropeçar num paralelo mais saliente.
Ela disfarçou o sorriso,  mas não a satisfação por o reencontrar.
Ele engoliu em seco e balbuciou algumas palavras,  atordoado pela sua presença mas tentando manter a postura. 
 Brás ofereceu-se para ir buscar qualquer coisa que se bebesse e desapareceu no meio da multidão,  não regressando mais. Coisa que nem ele nem ela repararam porque não tiravam os olhos um do outro nem por um segundo, não fosse um deles desaparecer também de repente para parte incerta.
 Os lábios exasperavam por tocar-se,  as trémulas mãos por sentir a pele ardente com incendiário desejo. Sem dizer uma palavra subiram apressadamente as escadas que davam para o apartamento de Margarida, onde entraram de rompante, fechando tão abruptamente a porta que me deixaram do lado de fora sem qualquer hipótese de narrar o que quer que fosse que se passasse do outro lado entre os dois.
 Quanto a Brás não mais regressou à Travessa da Espera,  restando-me apenas esperar que Gomes de Sá decida descer para continuar com a estória. Podia agora contar-vos daquela vez em que apanhei gonorreia com uma prostituta filipina de setenta anos, ou até entreter-vos com um elaborado número de sapateado verbal, coisa em que sou, aliás,  exímio. Mas não vou fazê-lo, vou manter a calma e aguardar serenamente que alguém apareça para dar sentido, e algum movimento já agora,  à narrativa. Se calhar é melhor sentar-me enquanto espero. Irra, que raio de nome mais adequado tem esta travessa.  Porque parece que é só o que por aqui se faz, esperar. Que a gasolina desça, que o ordenado suba, que a vida melhore, que a justiça funcione, que a temperatura global não aumente. Realmente, mais vale esperar sentado. Aqui parece-me bem, com licença. Raios. Parece que fazem de propósito,  acabadinho de alapar o cagueiro e agora é que o morcão decide sair para a rua. C'um  caralho que até se me soltou a pronúncia do Norte. Bem, o melhor é mesmo seguir com isto, não vá eu perdê-lo de vista outra vez.
 Gomes de Sá flutuava no ar, e os seus pés não mais tocaram o chão nas horas seguintes. Margarida não o acompanhava, tinha coisas importantes para fazer no dia seguinte,  segundo ela própria. Sá tirou o telemóvel do bolso,  olhou-o por uns segundos e voltou a guardá-lo.  Embrenhou-se de novo pelas ruas apertadas, sem saber bem para onde ia mas seguro de que iria lá chegar.  Quando passava em frente a uma montra  reparou que tinha a camisola do avesso.  Parou um pouco, olhou de novo e percebeu que afinal não era a camisola que estava do avesso mas sim ele próprio.  Resolveu o assunto e lá foi, pelo Bairro adentro a flutuar, o que era ótimo porque pelo menos assim não andava a tropeçar nos paralelos. Às tantas decidiu que um chá poderia ajudá-lo a basear-se e entrou num pequeno sítio onde atrás do balcão se podiam ver vários frascos com ervas de todos os tipos.  Percorreu o espaço com os olhos em busca de uma mesa livre, acabando por descobrir Brás sorrindo num canto, agarrado a uma chávena fumegante. Sentou-se junto do amigo e pediu um básico chá de cidreira. Trocaram olhares por instantes e ficaram a partilhar o silêncio enquanto consumiam a reconfortante bebida. Gomes de Sá não conseguia evitar o sorriso, os olhos sorriam, as orelhas sorriam, o dedo pequenino do pé direito rebolava de contentamento. Sentia um formigueiro pelo corpo todo, pura electricidade.
Brás fez sinal com a cabeça, levantou-se e saiu, Gomes de Sá seguiu-lhe os passos. Caminhavam apressadamente,  influenciados pelo ritmo acelerado pela urgência de coisa nenhuma que os rodeava na selva de betão, desviando-se aqui e ali de uma ou outra alma errante a contas com o excesso de álcool.  Conseguiram a custo libertar-se do labiríntico e superpovoado aglomerado de ruelas e desceram a Calçada da Glória a correr, movidos pela Lua cheia.
- O último a chegar lá abaixo é um político em campanha.  Gritava Brás. 
- Então podes começar a preparar o teu discurso, otário. Respondia Gomes de Sá ao mesmo tempo que o ultrapassava.
-  Não foi bem isso que eu disse sr. Doutor. Retorquia Brás,  retomando o seu lugar na frente.
- Isso é pura demagogia excelentíssimo. Replicava Gomes de Sá correndo ainda mais rápido.
E assim, num fósforo e a descer, foram da Glória à Liberdade.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Com licença

Se eu tivesse uma fisga não ia aos pardais, mas antes a apontava aos abutres e demais parasitas. Não faço fretes, nem cerimónia. Não é que não tenha pedigree, isso é outra estória, questão de parcimónia, simplifico logo existo. Onde é que eu já ouvi isto? É que ouço tanta coisa vinda de tantos artistas que me custa a distinguir o que é sumo e o que é lixo. Bicho a coisa 'tá feia, chega a hora de roubar 'tá tudo fora da toca mas quando a cena é ajudar... zumba,  cabeça na areia. Tudo Robins dos Bosques de boca, Zés do Telhado de fancaria. Se eu pudesse escolher ser qualquer outro animal acho que preferia. Mas só me resta ser este ser inteligente, coisa que, sinceramente, ninguém diria. 

domingo, 12 de outubro de 2014

Um sofá e um dia de chuva

Espectacular espectáculo espectaculoso. Espectacularizador espartilho bem apertado à volta do cérebro. Encurtando as vistas, qual cabra cega dando voltas sobre si. Manobras de diversão, luzinhas a piscar, passadeira vermelha estendida à incongruência. Senta-te e aprecia o irónico desfile da letargia.
Regala os teus olhos com fumo e espelhos, porque é só o que terás se assim escolheres.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Listen carefully, I shall say this only once.

The one that lays beneath, carrying the weight forward, the underdog, that's who i am. But show me the alpha dog and i swear i will bite his head off. I am here to be unbored,  so unbore me or let me be.
Don't rearrange me, don't reeducate me, because i'm ten feet tall and several miles wide. We're all born of two mothers, women are the alpha on this pack.  I will humbly bow before mother Nature, and, a thousand times pay tribute to my own mother, but i will not be bent by the unjust laws of men.
I am the one just passing by. Mearly watching,  mearly living,  mearly trying to understand. But not ever so on the verge of being nearly blind, nearly extinct, nearly ignorant.

Tanta dor

Mudaria alguma coisa se eu dissesse que tenho o Qi de uma batata doce? E que a cada palavra escrita equivale meio litro de suor, e a cada nota da guitarra anos de vida.
Que por acaso sou estúpido, mas que não escrevo ao acaso. Sai de mim, literalmente, tudo o que passo para o papel. E é parte de mim que permanece, fora de mim, porque assim entendo a partilha, de dentro para fora, sem esperar nada em troca.
Bem ou mal, isto é o que eu sei fazer e o que tenho para oferecer, não posso parar, não posso parar-me, porque estou vivo em palavras que escrevo como se não houvesse amanhã. Porque talvez não haja. Porque escrever é sonhar. E sonhar, lá está, é viver.

Claro como água

Retiro tudo o que disse.
Ai não dá?  Então reitero tudo o que disse.
Ou melhor, repito o que não disse e engulo o que jamais direi.
Se já o atarracado Napoleão tinha manias de grandeza do alto do seu metro e meio, não poderia eu por vezes sentir-me encafuado aqui no pequeno burgo, numa semi existência adquirida a crédito? Empurrado daqui para ali, ajustado às necessidades dos mercados, indexado ao PSI20. Vivendo em horas, que mesmo sendo minhas, me são emprestadas e pagas com vida, naquele que é o maior negócio do século,  do milénio, da História, a divisão dos homens em classes sociais.
Quem distribui o privilégio? Quem avalia a casta de cada Um? Quem decide quem sobrevive e quem fica pelo caminho? E serão os mais aptos ou os com maior provisão bancária a sobreviver? 
Tudo questões, inquestionavelmente, que me trazem todo o tipo de problemas. Porque sempre foi assim e não era agora que ia mudar, porque não serei eu concerteza a mudar a situação,  porque é demagogia afirmar que se pode e deve mudar para melhor, etc. e tal.
Claro que, se estivermos na fila para comprar um IPHONE ou o novo BMW, mudar não dá jeito nenhum. Óbvio que, se estivermos à espera do nosso dia de usufruir deste desequilíbrio para subir também na vida, não importa como, não estaremos minimamente interessados em mudar. Claro como água.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

O Ego ao Centro

Fruta da época para a imprensa cor de rosa.
Fresca e sumarenta posta de merda de imitação.
Cá para mim é só caroço.  E polpa, nenhuma,
Apenas a afirmação. Do vazio. Somente a confirmação. Do nada.
Afinal de que real cona saem todos estes privilegiados?
Os dos Louis Vuitton, os dos oito carros na garagem, os do champanhe que se diz chompánhe,  os dos bombons e dos bons tons, os do ó querida não faça força que se me torce o zizi.
Certamente não roçaram com as orelhas numa cona vulgar como todos os outros ao nascer. Deslizaram para o Mundo por uma espécie de pipi dourado abaixo com certeza.
Merda de imitação, merda de imitação,  merda de imitação.
Nem sequer um cagalhão.  Pura ficção,  areia para os olhos do povo.
Ao menos que fosse ópio, que sempre se nos atordoava o senso comum.
Mas é apenas areia, que arranha a alma por dentro.
Pedaços de lixo que voam no vento. Com o ego ao centro.

domingo, 5 de outubro de 2014

estórias de encantar - fácil de dizer, difícil de conseguir

Emborcaram com vontade as bifanas,  acompanhadas pela essencial imperial, e deixaram-se ficar sentados a ver o tempo passar. Quando se cansaram de estar parados,  levantaram-se com a intenção de pagar a conta ao balcão e continuar o passeio a pé por Lisboa, mas quando lá chegaram é que se lembraram que não tinham como. Deram dois passos atrás e enfiaram-se num canto a ruminar numa solução para o problema. Já tinham comido e bebido,  por isso devolver  os itens consumidos, pelo menos nas mesmas condições em que foram entregues,  estava fora de questão. Dinheiro não havia, portanto pagar também não estava nos planos.  Só restava uma saída: a fuga subtíl . Teriam de se evaporar dali, sair de fininho como dois ilusionistas,  sem que ninguém se apercebesse.  Podiam simplesmente começar a correr, mas isso não tinha qualquer charme, e já não eram nenhuns miúdos, pensavam.
A certa altura Brás reparou num grupo de turistas japoneses de câmaras em punho e fez sinal a Gomes de Sá com os olhos, indicando que deviam juntar-se a eles. Brás pegou no telemóvel e apontou para o amigo enquanto o ia posicionando junto ao aglomerado de turistas, como se estivesse a preparar o cenário para uma fotografia.
- Mais para trás,  agora um pouquinho para a direita,  só mais dois passos para trás,  isso, aí está ótimo. . Comandava Brás. E Gomes de Sá seguia as instruções à risca. Quando chegaram suficientemente perto do grupo, enfiaram-se para dentro da bola de gente e deixaram-se ficar lá pelo meio. Os japoneses olhavam para eles de soslaio,  interrogando-se sobre quem seriam  aquelas duas personagens.
Às tantas Brás lembrou-se que se calhar era melhor falar inglês para disfarçar e virou-se para Gomes e atirou:
- Like in the street,  on the fringe you know? Very lots yes. 
Gomes de Sá,  surpreendido e confuso com aquela manobra, respondeu de imediato, como pôde:
- Yes, in the backside.  On the waves is the rains like.
Quando vislumbraram um espacinho para fugir deram corda aos sapatos e meteram pela Travessa das Mónicas. Com os calcanhares a bater na nuca só pararam no Jardim do Tabaco.
- Ouve, já não corria assim desde o liceu. O melhor é afastares-te que acho que me vai saltar um pulmão pela boca. Disse Gomes, ofegante.
- Por acaso... Mas diz lá que não foi brutal. Ufa, até me vou sentar um bocadinho. Altercou Brás, segundos antes de cair pelo chão inanimado.
Gomes de Sá acercou-se do amigo e tentou colocá-lo numa posição confortável, enquanto olhava em volta à procura de um lugar onde pedir um copo de água e um pouco de açúcar.  Brás abrira os olhos entretanto  e tentava acalmar o visivelmente transtornado amigo.
- Calma Sá,  já passou.
- Foda-se Brás! Estava a ver que me dava aqui uma coisinha má.  Aguenta aí que eu vou buscar-te um copo de água com açúcar. E outro para mim já agora. Isso foi da corrida, não estás habituado.
- Isto não vai lá com água e açúcar amigo, talvez com um par de vodcas. Mas com água não estou a ver.
- Que conversa é essa Brás? Se estiveres mal passamos num hospital. Não custa nada e mais vale prevenir.
- Hospitais é que não, eu só preciso de um tempinho para respirar.
- Ouve Brás, tu sabes que eu te respeito e que podes contar comigo mas, ou me dizes o que se passa, ou vamos a um hospital. Porque senão eu juro que te deixo aqui sozinho.
- Senta-te lá aqui um bocadinho,  respira fundo e conta até dez. Sabes o que eu gosto em ti Gomes? É o facto de eu poder confiar que não me vais nunca julgar por alguma coisa que eu faça.
- Não sei se estou a gostar do rumo que esta conversa está a tomar.
- E sabes que mais? É esse teu despenteado cabelo que te denuncia. Tu não estás minimamente preocupado com o que os outros pensam de ti. Logo, deduzo que não percas muito tempo a pensar em julgar alguém. Já dizia o meu avô que os gadelhudos eram de confiança e que tínhamos de estar de olho era nos penteadinhos.
- Um gajo inteligente esse teu avô. Mas onde, exactamente,  é que pretendes chegar com essa conversa é que eu não estou a ver.
- Calma, lá chegaremos Gomes. Aqui há uns meses andava com umas dores nas cruzes que não me passavam de maneira nenhuma, e olha que eu tentei de tudo. Acunpunctura,  Shiatsu, Reiki, Reiku que é uma mistura de Reiki com Shiatsu, enfim, tudo. E quando nada resultou fui ao médico,  que me mandou fazer uma série de exames, uns mais manhosos que outros, e no fim diagnosticou-me um cancro no pâncreas e dois meses de vida. E a modos que é isto Gomes.
- Foda-se Brás , tu 'tás a gozar com a minha cara, só pode caralho. Mais uma razão para irmos a um hospital.  Há tratamentos para essas coisas, esta merda já não é como antigamente, não estamos no século XIX. Todos os dias se fazem novos avanços Brás. Vamos lá cacete.
- Para? Para me encherem de comprimidos e me proibirem de viver os dias que me restam, que nem sei se são muitos ou poucos Gomes? Ou passá-los numa cama de hospital? Que obsessão é essa em sobreviver à mais que certa morte? Eu espero sobreviver à vida, e isso é coisa que só posso fazer vivendo.  Eu sei que é difícil para ti,  mas eu tenho de saber se posso confiar que não vais insistir nisso dos hospitais.
Gomes de Sá não respondeu porque estava demasiado ocupado a bater com a cabeça numa parede, enquanto repetia até à exaustão a expressão "foda-se Brás", de lágrimas nos olhos.  Esteve ali uma boa meia hora até ser vencido pelo cansaço e voltar para perto do amigo. Ficaram algum tempo sentados a partilhar o silêncio que enchia o ar e o tornava pesado, quase irrespirável por momentos.
Já semi recuperados, subiram novamente à Graça,  onde tinham deixado o carro. Durante horas não disseram uma única palavra,  sentiam-se como se tivessem estado às voltas numa enorme máquina de lavar roupa em modo de centrifugação. Comunicavam através de olhares e acenos de cabeça, Gomes de Sá conduziu-os até Belém,  onde estacionaram de frente para o rio e se deixaram ficar mais um bocado a assimilar e a processar aquela nova realidade com que se deparavam.  Um inesperado desvio que lhes acertara em cheio no meio dos olhos, deixando-os atordoados e dormentes durante o resto da tarde.
Brás enrolava um dos seus cigarros com mistura enquanto deixava o amigo recompor-se do choque. Gomes de Sá lançava-lhe um olhar reprovador,  como que dizendo que não era a melhor ideia.
- Achas mesmo que o melhor para ti é continuares a fumar? Inquiriu.
- Se quiseres posso deixar de o fazer, e encher-me com todo o tipo de outras merdas. Carregadinhas de químicos,  que me tirem as dores e me deixem dormente ao ponto de não conseguir usar o cérebro,  a babar-me para a minha bata de hospital.
- Pronto, pronto. Já entendi.  Credo Brás,  escusas de dramatizar assim tanto, ao nível de novela da TVI.  Realmente, mais vale isso do que andares a encharcar-te com comprimidos e merdas desse género.
- Relaxa Gomes, há coisas que estão fora do nosso controlo. Não podemos salvar toda a gente. Faz a tua viagem, saboreia-a,  espreme-a bem espremida, até à última gota. Não deixes nada para trás mas move-te para a frente.  E, sobretudo agora, não julgues, não ponderes,  não ajuízes. Esquece a razão e a lógica e abraça o momento. Porque é o que temos.
- Fácil para ti de dizer, mas difícil para mim de conseguir.  Acho que preciso de um pastel de nata, ou três.
Dirigiram-se ao outro lado da marginal, onde se encontravam os famosos pasteis de Belém. Quando pararam o carro Brás pegou numa garrafa de água e numa meia e deslocou-se para junto de um semáforo à espera que alguém parasse. Assim que um carro parou  lançou-se na sua frente, despejando a água no pára brisas com uma mão e passando a meia com a outra, sujando mais o vidro do que propriamente limpando. De seguida dirigiu-se ao condutor com a mão estendida em forma de concha. E, para grande espanto de Gomes de Sá,  que observava do carro, conseguiu uma moeda. Seguiu-se mais um carro, e outro e outro. Até que finalmente acumulara moedas suficientes para meia dúzia de pasteis.  Atravessaram a estrada para se sentarem num banco no jardim dos Jerónimos a degustar a tão especial iguaria.
Gomes de Sá recordava os bons momentos passados naquele mesmo jardim com a sua primeira bicicleta. As sucessivas quedas, resultado de uma longa batalha contra as rodinhas, e a derradeira conquista de finalmente poder pedalar livremente por todo aquele imenso jardim, que era do tamanho do Mundo para si naquela altura. Não tinha fim, podia correr e saltar horas a fio sem nunca sair dali, sempre a coberto da atenção dos seus pais,  com um mimo sempre à mão no caso de uma queda mais espalhafatosa.
- Hoje jantamos em minha casa.  Disse convicto.
Respirou fundo,  largando ali o enorme peso que carregava à horas, tentando alinhar-se de novo com o Cosmos.

sábado, 4 de outubro de 2014

estórias de encantar - uma Big Band, três padres Jesuítas e dois polícias a cavalo

Gomes de Sá acordou a meio da noite com a estranha sensação de ainda estar a dormir. Tomou um duche, vestiu-se e depois despiu-se e logo a seguir vestiu-se outra vez, só para ter a certeza. Passou pela cozinha e preparou um café,  que gostava de tomar sem açúcar e assim  para o forte. Saiu de casa e entrou no carro, deu à chave mas não obteve qualquer resposta do motor, que estava ainda meio adormecido e não estava habituado a trabalhar àquelas horas. Tentou uma segunda vez e nada, foi a casa preparou outro café e regressou, abriu o capô e sussurrou um gentil "bom dia" enquanto despejava a chávena para o depósito do óleo. O motor deu uma espreguiçadela e lá despertou. Gomes de Sá entrou no carro e deu novamente à chave, o motor respondeu de imediato e lá seguiram caminho, só parando no Bairro Alto.
Quando lá chegou não se lembrava sequer de ter feito a viagem, estacionou o carro onde conseguiu e entrou pelo bairro adentro sem saber bem para onde ia, mas com passos largos e determinados como se estivesse a ser guiado por uma força estranha. Enfiou a mão no bolso das calças para procurar o pequeno brinco que encontrara no seu carro na noite em que, supostamente,  se encontrara com Margarida,  uma morena que conhecera na praia e que por alguma razão não lhe saía da cabeça. Ao tirar a mão ficou com ela presa numa armadilha para caçar tartarugas anãs do Bornéu, que trazia sempre consigo para o caso de alguma eventualidade. Ao fim de alguns minutos conseguiu finalmente soltar-se.
Abrandou subitamente o passo ao entrar na Rua do Norte, como se estivesse de algum modo mais perto do seu destino. Andava aos ésses seguindo o chão disforme, de pedras negras e gastas, que cobriam as ruas apertadas. Nenhuma delas igual às outras,  e todas essenciais no seu conjunto,  tal como as pessoas que as pisavam. Cabiam todas as cores do Mundo naquele atarracado local no alto da colina. Pegou no telemóvel e desatou a tirar fotografias a tudo o que via, às ruas, aos cruzamentos,  aos graffitis nas paredes, a um cão que roçava o cu pelo chão, certamente para se coçar, a um homem que corria todo nu pelo meio da multidão,  com um cravo na mão a gritar que o seu nome era Tó Zé e que tinha salvo o 25 de Abril. Toda esta azáfama tinha-lhe dado sede e entrou num bar para beber um gin tónico,  bebeu tranquilamente o gin enquanto escolhia as fotografias que mais lhe agradavam e descartava as restantes. Pediu mais um gin para o caminho e saiu de novo para a rua com o telemóvel prontinho a disparar. Ainda chegou a tempo de apanhar uma Big Band que passava, seguida de um pelotão de ciclistas da Volta a Portugal, três padres Jesuítas e dois polícias a cavalo.
Enquanto fotografava surgiu-lhe no canto do ecrã uma placa com a inscrição "Travessa da Espera" e pareceu-lhe o sítio ideal para se sentar, até porque já tinha ouvido dizer que às vezes é melhor esperar sentado. Ficou por ali a observar quem passava, ou melhor, os pés de quem passava porque era o que estava ao nível dos seus olhos. Passavam ténis,  saltos agulha, botas da tropa, sandálias, galochas com olhinhos e boca, pernas de pau, pantufas com orelhas de coelho, enfim, uma ecléctica selecção de calçado variado, acoplado certamente a uma panóplia de gente diferente que coexistia pacificamente naquele lugar.
Às tantas, no meio da multidão de membros inferiores, surgiram umas pernas que lhe eram familiares, cobertas até perto do joelho por um vestido que também não lhe era desconhecido.  Seguiu-as com o olhar no sentido ascendente,  da foz à nascente, passando depois os olhos pelas curvilíneas formas que lhe lembravam uma guitarra perfeita,  continuou a subir até descobrir o negro e longo cabelo que ondulava com a brisa nocturna.
Do alto das torneadas pernas Margarida olhava para ele espantada.
- Ai, Margarida, se eu te desse a minha vida, que farias tu com ela? Lançou ele.
Ela sorriu, mas não muito para não dar a entender que tinha gostado, mas a realidade é que tinha gostado. Sentou-se ao seu lado, na esquina da Rua do Norte com a Travessa da Espera, que ganhava agora um novo e refrescante sentido,  e por ali ficaram à conversa , alternando à vez as idas ao bar para abastecer de gin. Era quase manhã quando ele se lembrou de lhe devolver o brinco.
- Encontrei isto, acho que é teu. Quer dizer, só sei que não é meu, não me lembro muito bem como foi parar ao meu carro. Disse timidamente. 
Ela agarrou-o e puxou-o para ela, espetando-lhe um beijo que o deixou a cambalear à procura de alguma coisa onde se agarrar para não cair.
- Pode ser que isto te reavive a memória.  Disse ela.
- É pá,  se queres que te diga acho que melhorou um pouquinho.  Mas pelo sim pelo não é melhor continuares a tentar.
Ela convidou-o para subir e ele disse que sim sem pensar meia vez, não fosse ela mudar de ideias.  Subiram as escadas a correr, entraram em casa e fecharam a porta com estrondo ao se encostarem a ela. Margarida desapertava-lhe o cinto enquanto ele tentava despir-lhe sofregamente o vestido,  olhavam-se nos olhos, desafiando-se um ao outro, o momento chegara.
- Gomes, ó Gomes. 'Tá a Acordar! Gritava Brás abanando freneticamente o amigo, que dormia que nem uma pedra enquanto se babava e sorria deitado na rede, onde tinha passado a noite à conta dos digestivos que Gonçalo servira sem parar.
- Princesa? Murmurou Gomes de Sá. 
- Deves estar com uma sorte. Não me leves a mal ó Gomes, eu gosto muito de ti. Mas ainda não chega para me tratares assim.  
- Foda-se Brás. 
- Mas o que é que eu fiz agora? Só te vim acordar porque estás aí com essa cara de parvo há pr'aí doze horas, já fui à vila e vim três vezes só para passar o tempo. Trouxe-te o pequeno almoço e tudo.
- E o Chico e o Gonçalo? 
- Há horas que saíram de casa.  Deixaram-te um abraço,  como é que é,  vamos andar? Perguntou Brás impaciente. 
- Só se for já.
Fizeram-se à estrada,  mas saíram a perder porque a estrada chegava bem para eles os dois e deixou-os num estado lastimável,  com alcatrão incrustado por todo o lado. Decidiram então pôr-se a andar, mas descobriram passado pouco tempo que não ia resultar, porque tinham de levar o carro e ainda só tinham percorrido vinte quilómetros e já não aguentavam as dores nas costas. Pousaram o carro na berma da estrada, à sombra de um enorme pinheiro bravo e sentaram-se a recuperar o fôlego. 
Do outro lado do Tejo Margarida saía de casa para uma tarde entre amigas.  Acordara naquela manhã com um sorriso nos lábios para o qual não tinha explicação.  E do qual não conseguia livrar-se de maneira nenhuma,  tentara várias vezes ao espelho, depois do banho, fazer as mais carrancudas expressões, mas sem efeito. Nada do que pudesse fazer parecia ser suficiente para conseguir apagar aquele apalermado sorriso. A verdade é que lhe assentava que nem uma luva.
Sentia-se pronta para desfrutar de um pouco de sol em boa companhia numa das esplanadas de Lisboa. Combinara com Rita e Rafaela no miradouro da Graça e, para manter a tradição,  estava atrasada. Só que ainda não sabia porque não tinha olhado para o relógio,  nem iria olhar durante o resto da tarde. Quando chegou já elas estavam instaladas em amena cavaqueira,  enquanto bebericavam uma imperial voltadas para o Tejo. Tratou de pedir um gin tónico e sentou-se também a contemplar o horizonte. 
Conversaram horas a fio sobre os mais variados assuntos e temas da actualidade,  e da antiguidade também,  porque era uma conversa extremamente abrangente. Às tantas, encetaram uma acesa discussão sobre qual seria o melhor isco a usar na pesca do achigã e não conseguiram chegar a acordo se seria casulo, miolo de pão ou ganso-coreano. Quando os ânimos acalmaram, lembraram-se de subir ao miradouro da Nossa Senhora do Monte para arejar e porque a vista era ainda mais deslumbrante dali.
Quando abandonavam a esplanada, cruzaram-se com os dois amigos que acabavam de chegar a Lisboa,  directos à Graça a pedido de Brás. Mas nem um nem outro repararam e elas lá seguiram enquanto eles se sentavam, precisamente na mesa que elas ocupavam ainda há uns minutos atrás. Brás aproveitou para captar umas fotografias das redondezas enquanto esperavam pelas bifanas.  Gomes de Sá deixou-se ficar,  embalado na sua cadeira com vista para o Tejo. O rio abraçava a cidade, apaziguando o constante e inevitável alvoroço causado por um exército de milhões de formigas em incógnita missão.
Gomes de Sá fez sinal a Brás que as bifanas estavam à espera.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

estórias de encantar - Amores perfeitos

Ao final da tarde dirigiram-se ao café de Chico,  que os esperava para o jantar. 
Quando chegaram Chico retirava para um tabuleiro a última fornada de pão daquele dia. Usava uma mistura à base de lenha de eucalipto para alimentar o pequeno forno, o que dava ao pão um aroma e um sabor muito próprios, uma espécie de assinatura do autor como gostava de dizer.
Chico suava com o calor que emanava do forno e com a energia despendida naquele árduo processo, mas sorria como uma criança enquanto virava os pães no tabuleiro para ver se estavam a seu gosto, avaliando o tamanho e a consistência. Sempre pensando naquilo que poderia eventualmente melhorar na perseguição do auto-imposto objectivo de criar o pão perfeito.
- Provem  aqui isto e depois digam-me o que acham. Este tem passas... E este pinhões. Disse ele com os olhos a brilhar enquanto partia com as mãos o pão e o partilhava ainda fumegante.
Os dois amigos não se fizeram rogados, até porque estavam esfaimados à conta da maresia e dos cigarros marroquinos,  e atacaram furiosamente o pão.  Mas mal o puseram à boca estacaram-se na sua euforia e abrandaram os sentidos, forçados a travar por aquela explosão de sabores e texturas. Podiam sentir a massa arejada e fofa, o tempero perfeito, a crosta crocante que estalava à primeira dentada,  um sabor a lenha, um travo a paixão e saberes ancestrais que aquele pão guardava dentro de si.
- Hum. Acho que até soltei uma pinguinha,  preciso de um cigarro. Disse Brás ainda de olhos fechados a saborear o pão de passas.
- Sim senhor Chico, merecias um prémio por este pão.  Mas não era um prémio qualquer, tinha de ser tipo um Nobel do Pão ou coisa assim do tipo. Concordou Gomes de Sá. 
Seguiram Chico até sua casa, a poucos minutos dali. Quando chegaram foram recebidos por Pantufa e Pipoca, os dois cães rafeiros de Chico que os esperavam ao portão.  No alpendre Timóteo,  o gato, espreguiçava-se vagarosamente por baixo de um banco comprido feito de paletes.  A seu lado Zara, a gata,  afiava as unhas nas pernas de uma mesa, também ela feita de paletes.  Pendurada na parede por cima da mesa uma guitarra, com marcas de uso, traços de guerra que mostravam que era mais do que  um mero objecto decorativo.
Gomes de Sá desaparecera entretanto pelo jardim adentro, guiado pelo cheiro a alecrim, tomilho e alfazema que o vento gentilmente  depositara nos seus sensores olfactivos. Ao redor da casa cresciam todo o tipo de ervas, frutos e legumes. Percorreu lentamente o terreno, deixando-se acordar pelo cheiro a terra molhada até regressar novamente à entrada da casa.
- Nada mau, bela horta amigo. E também gostei das aromáticas,  és tu que cuidas?  Perguntou a Francisco. 
- Não,  é o Gonçalo,  o meu companheiro. Quer dizer, eu dou uma ajuda mas ele é que tem os dedos verdes,  tudo o que ele planta cresce. Já eu sempre que tento semear alguma coisa é uma tragédia.
Entraram em casa e deixaram os sapatos à porta, Francisco tratou de instalá-los e apresentar-lhes o resto da casa. Deixou-os no sótão renovado por ele e por Gonçalo,  que era agora o quarto de hóspedes,  indispensável para quem estava longe de casa e gostava de receber os amigos. Os que conhecera desde sempre e os que encontrara ontem, que tinham em comum a energia que os atraía e fazia com que se cruzassem por vezes nas suas órbitas.  Pontos comuns diriam alguns. 
Francisco pegou numa cesta e foi até à horta ver o que podia usar para o jantar enquanto Gomes e Brás aproveitaram para se acomodarem e se passarem por água doce para tirar o sal.
Gomes de Sá correu para a casa de banho para ser o primeiro a tomar duche porque Brás demorava sempre uma eternidade com cantorias e figuras ridículas em frente ao espelho. Tomou duche,  vestiu-se e saiu para o alpendre onde a noite já se tinha instalado e o silêncio era apenas quebrado aqui e ali por um ou outro mais resiliente grilo. Pipoca e Pantufa apressaram-se a vir cumprimentá-lo efusivamente, desaparecendo depois a correr pelo jardim afora. Mais tarde Timóteo acabaria também por se apresentar,  sem grandes confianças, roçando-se apenas nas suas pernas ao passar por ele.
Pegou na guitarra azul e sentou-se com ela no banco comprido, sentiu-lhe o peso e passou-lhe as mãos suavemente ao longo da caixa, seguindo as suas curvilíneas formas.  Pousou-a no colo e tocou na primeira corda para lhe conhecer a voz, depois tocou na segunda, e a seguir na terceira  e por aí adiante até chegar à sexta, apertando ou relaxando a tensão até chegar à afinação desejada. Quando finalmente acertou  deixou-se ficar à espera que a guitarra lhe desse o sinal para começar, porque aquele não era um processo de anexação violenta mas sim de consentida aproximação. Para tocar era preciso o consentimento da própria guitarra,  havia mesmo histórias de guitarras que se recusavam a tocar nas mãos de uns e de outros e que só se mostravam em todo o seu potencial no colo do seu designado cúmplice. 
Sem dar por ela começou a dedilhar as cordas com a mão direita enquanto  as pressionava ao longo do braço com a esquerda. Não fazia ideia do que era um Dó,  ou qualquer outra nota por sinal,  e a guitarra agradeceu-lhe por poder caminhar por outros caminhos,  fugir ao triste destino dos mesmos acordes repetidos vezes sem conta e tantas outras vezes ouvidos na boca de outras guitarras. Ficaram por ali algum tempo, que lhes pareceu curto porque tinham tanto para conversar mas na realidade tinham passado quase duas horas e de dentro de casa vinha já um cheirinho que lhe inundava as fossas nasais.
Brás balançava-se na rede saboreando a melodia com Zara ao colo quando Francisco abriu a porta e disse:
- Está tudo pronto,  já falei com o Gonçalo e deve estar aí a chegar. Por isso meninos é lavar as mãozinhas e ir para a mesa. 
 Gonçalo chegou minutos depois com um ramo de flores na mão escondida por trás das costas. Faziam três anos que haviam dado o nó, oficialmente porque estavam juntos há mais de dez. Mas naquele mesmo dia, há três anos atrás, trocaram alianças diante da família e amigos, com tudo o que achavam ter direito.
Dirigiu-se a Francisco e estendeu a mão revelando o enorme ramo.
- Amores Perfeitos! Exclamou Francisco.
- Sim, meu amor. Porque também os há.  Respondeu Gonçalo a sorrir.
Chico apresentou o seu companheiro aos dois amigos e conduziu-os a todos em rebanho para a mesa, porque o peixe começava a perder a graça. Deixou-os  na mesa para ir tirar o tabuleiro com o sargo pescado no dia e os legumes colhidos horas antes.
Pousou o tabuleiro na  mesa, sentou-se e esperou que todos se servissem para reclamar para si o merecido prémio pelo esforço e dedicação que pusera naquela refeição,  a sua parte favorita, a cabeça do peixe. Que desmantelou minuciosamente até sobrar apenas um monte de espinhas.
- Bem, nunca pensei que uma cenoura pudesse saber tanto a cenoura, se é que isto faz algum sentido. O que é que lhes metes? Perguntou Brás interrompendo o silêncio entretanto instalado.
- Terra e água amigo. E algum tempo também,  claro. Respondeu Gonçalo. 
Gomes de Sá aproveitava o jantar para viajar através do tempo, montado nos cinco sentidos. Aquele peixe no forno sabia-lhe àquela sensação de desprendimento total que só sentimos quando somos crianças,  a total ausência de paredes ou barreiras. Cheirava-lhe ao colo da sua mãe,  ou a um eterno jantar de amigos.
- E então vocês estão a pensar ficar até quando por aqui?  Inquiriu Gonçalo. 
- Tu queres lá ver, ainda agora chegaste já 'tás a despachar o pessoal? Acho que gosto mais do Chico. Acho não , tenho a certeza.  Brincou Brás. 
- Nada disso, era mais para fazer conversa, o que já deu para perceber que não é bem o meu forte. Por mim podem ficar o tempo que quiserem. 
- Isso é que é falar, até merece um brinde. De qualquer maneira obrigado mas amanhã seguimos caminho que a Croácia ainda é longe.
Levantaram a mesa mas pousaram-na de seguida e retiraram apenas o que estava sobre ela. Depois tiraram à sorte quem iria lavar a louça e a sorte decidiu que Brás seria o eleito.  E foi bem decidido porque Brás até tinha bastante prática na coisa e despachou aquilo como se nada fosse.
De seguida juntou-se aos outros, que o esperavam no alpendre para um digestivo e dois dedos de conversa sob a lua cheia. Conseguiam ouvir as marés vivas em rebuliço lá longe e o vento a ziguezaguear por entre as árvores em redor da casa.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

estórias de encantar - correrias desenfreadas

Pararam junto à Praia do Moinho de Baixo, no preciso momento em que começou a chover torrencialmente por aquelas bandas. O vento soprava lá fora, fazendo-se sentir quando por vezes abanava o carro com tal veemência que este parecia querer sair do chão. O rebentar das ondas estremecia o ar em rugidos tenebrosos, que viajavam quilometros por vezes,  transportados pelo vento imperioso.
- Não querias Natureza? Aqui a tens. Disse Gomes de Sá em tom de brincadeira. 
Brás fechara os olhos para desfrutar em pleno daquele banquete de sensações, ou melhor, daquele celestial concerto, magistralmente interpretado pela orquestra dos elementos pensava. Mas não abria a boca para não interferir na caótica melodia. 
- Por acaso há por aqui alguma coisa que se beba ó Brás? Com o devido grau alcoólico,  se é que me entendes. 'Tou sim Brás, 'tás aí? Insistiu Gomes de Sá.
- Ó cum canário, vai chatear a tua prima meu! Vê lá atrás na mala, no saco azul se não está uma garrafa de Jim Beam, pode ser que te ajude a fechar essa matraca.  E a mim a aturar-te. Disse finalmente Brás,  e lá tentou , sem efeito, piscar o olho.
- Está aqui meu menino,  achei o aquecimento central.  Gritou Gomes de Sá empunhando a garrafa,  já a correr para dentro do carro para fugir da chuva.
- Ou a chucha, como é conhecida por alguns. Retorquiu Brás. 
Gomes de Sá regressou ao interior com a garrafa e ligou o rádio. Assim ficaram durante um tempo a partilhar calmamente o bourbon e a deitar conversa fora,  como tão bem sabiam fazer.
- Ouve lá,  quem é que, no seu perfeito juízo, mete o Miguel Veloso a jogar? Com aquele pandeiro que mal se arrasta só se for para fazer sombra a algum colega que precise de se refrescar. Dizia Brás. 
- O Paulo Bento havia de ser preso. E o barbeiro dele também caralho.  Respondia Gomes de Sá. 
- Foda-se ó Gomes,  tu sabes que um gajo é amigo,  e tu és meu amigo. Daqueles que um gajo sabe que é amigo-amigo, porque um gajo tem muitos amigos né? 'Tás a perceber? Perguntou Brás. 
- O quê,  mas era para perceber? Por momentos até pensei que estivesses a falar croata. Ironizou Gomes de Sá perante a semi-embriaguez do amigo.
De repente, Brás abriu a porta do carro e correu pela areia molhada de braços abertos, deixando para trás a porta aberta e os sapatos.
- Eu fodi a tua mãe. Eu não preciso da misericórdia de nenhum Deus porque eu sou feliz. Gritava de olhos postos no céu enquanto dançava descalço debaixo da tempestade.
- Chupa Goldman Sachs,  avalia agora a taxa de risco dos meus enormes colhões. Gritava do fundo dos seus pulmões enquanto baixava as calças, sem nunca parar de dançar. 
Gomes de Sá acabou por sair do carro, eventualmente contagiado pela energia que o cercava. Juntou-se a Brás que rodopiava de braços abertos, como fazia quando era criança, até cair no chão na sua praia natal em Navtat. 
- Experimenta, vais ver que é, no mínimo,  libertador. Disse Brás com os olhos a brilhar.
- Já vi que sim, não sei se o tenho dentro de mim mas não custa nada tentar.
- O que é que tens a dizer em tua defesa? O que é que tens a dizer ao teu todo poderoso Deus de todas as coisas?
- Somos todos Deuses aqui em baixo. E Jesus tinha caspa. Lançou Gomes de Sá timidamente.
- Podia ter corrido pior.  Brincou Brás. 
- Mas também podia ter corrido muito melhor,  admito que já é um começo. E que tal voltarmos para o carro?
Regressaram ao carro, ensopados até aos ossos,  e trataram de vestir roupas secas. Ligaram o rádio e recostaram os bancos ao máximo para conseguirem uma posição razoavelmente confortável,  dentro das circunstâncias, para dormirem. Passava no rádio o Alabama Song  quando adormeceram.
Gomes de Sá acordou com os primeiros raios de Sol, muito benvindos depois daquela noite tempestuosa. Olhou para  Brás, que dormia profundamente no banco do lado,  e decidiu não o acordar. Saiu e foi directo à beira mar, onde deixou a roupa na areia e deu um mergulho na água fria que o fez imediatamente acordar dos efeitos da anestesia, administrada pelo dr. Jim Beam na noite anterior.
Sentou-se na areia a observar o oceano e a actividade de alguns grupos de gaivotas que partilhavam a praia com ele àquela matutina hora. Sentia-se leve, como se um enorme peso tivesse sido aliviado das suas antes doridas costas. Não sabia, nem queria, explicá-lo,  apenas aproveitar aquela sensação de leveza que percorria o seu corpo, das unhas dos pés à ponta dos cabelos.
Eis senão quando Brás passa a correr desvairado, entrando mar adentro de rompante com espampanante e ruidosa atitude, salpicando tudo à sua volta. Deu três ou quatro braçadas e deixou-se ficar a boiar enquanto olhava o céu imenso, o azul infinito,  o mesmo tecto que o abrigava aqui e na Croácia.
- Já comia qualquer coisa. Deve ser do ar da praia que me abre o apetite,  porque em princípio grávido não devo estar. Disse ele pensando em voz alta para ver se Gomes de Sá estava em sintonia.
- Podemos ir até à aldeia ver se conseguimos qualquer coisa, mas vou já avisando que não deve haver muitos turistas por aqui nesta altura do ano.
- Por mim tudo bem, eu até nem estava interessado em comer turistas, quer dizer pelo menos não no sentido literal. Mas olha que uma tosta mista até que marchava.
- Ai não,  não marchava.
Saíram do estacionamento e dirigiram-se à vila com os estômagos a reclamar de fome.  A meio do caminho Brás reparou que os seus sapatos não estavam no carro e tiveram de regressar à praia para os resgatar.
Mais tarde, na vila, estacionaram o carro e revistaram minuciosamente todos os cantinhos onde pudessem encontrar moedas perdidas, debaixo dos tapetes, nos espaços entre as portas e os bancos e mais onde se conseguissem lembrar. Juntaram o suficiente para dividirem uma tosta, e talvez ainda sobrasse para beberem qualquer coisa os dois.
Hipnotizados pelo cheiro a pão quente entraram num café e instalaram-se numa mesa à janela, uma das muitas mesas disponíveis uma vez que o café estava vazio. Brás pegou no jornal e desfolhou-o com displicência,  talvez em busca de algo diferente.
- Nada de novo. Concluiu enquanto pousava o jornal na mesa.
- Cheira-me só isto. E olha só o aspecto do pão destes senhores Brás!
- Dá para ver que por aqui não brincam com a comida não senhor. Só por causa disso já nem quero uma tosta mista, quero vinte pães com manteiga a estalar.
- Queres queres.
Foram atendidos por Francisco, Chico para os amigos como gostava de se apresentar. Um alfacinha apaixonado pelo Meco, o que não lhes era difícil de compreender,  que montara ali o seu negócio há dez anos, tentando recuperar a sua ligação à Terra através daquela padaria local.
Chico preparou-lhes a refeição, serviu-os, puxou de uma cadeira e sentou-se à mesa com eles, como se estivesse em casa diante dos seus amigos de sempre. Contou-lhes da sua aventura e daquele sonho tornado realidade à custa de muitas horas de sono perdidas com um daqueles empregos burocratas que lhe recheava a conta bancária mas o esvaziava a ele próprio.  Sempre muito direitinho,  encaixotado em gabinetes com vistas deslumbrantes,  apertado em gravatas e punhos de camisa do mais fino corte. Sempre o sorriso posto enquanto rodeado de delirantes e inflacionados egos no mundo do compra e vende, das aquisições e das fusões,  dos lay-offs, dos outsourcings e das grandes decisões na ponta de uma caneta.
Mundo que deixara para sempre,  desejando a todos que se fundissem bastante. Trocara-o agora pelo mundo da água e da farinha,  onde podia assistir em primeira mão ao produto do seu trabalho,  tocar-lhe, sentir-lhe o peso e o valor.
- Então e vocês estão a pensar ficar por cá quanto tempo? Perguntou Chico aos seus dois novos amigos.
- Se queres que te diga nem éramos para estar aqui, mas sim já a caminho da Croácia, por mais estranho que possa parecer. Respondeu Gomes de Sá,  que acabou por ter de resumir a triste sucessão de eventos que era aquela viagem, já antes de começar, muito graças ao intermitente cérebro de Brás.
Quando terminaram o café  Chico convidou-os para ficarem em sua casa  durante o resto do tempo que passassem no Meco e eles não viram razão para não aceitar. Regressaram à praia de estômago aconchegado e instalaram-se no imenso areal, rodeados do mais puro e absoluto silêncio,  sem interferências desnecessárias,  sem correrias desenfreadas,  sem usurpação de espaço, apenas e só o colo da Natureza onde apoiar a cabeça.
- Para onde correm as manadas? E será que quando lá chegam, se é que algum dia chegam, se apercebem disso? Ou continuam apenas a correr porque é só o que conhecem? Questionou Brás sentindo-se mais uma vez alinhado com o Universo.

sábado, 13 de setembro de 2014

estórias de encantar - o troco

Continuaram para Norte via Sesimbra,  onde descobriram entre o mar e a serra, uma vila piscatória de encantos mil que trazia a Brás um cheirinho da sua terra natal Navtat. O mar de águas cristalinas, rico em vida, salpicado de cores e as gentes morenas de peles endurecidas pelo sal e pelo sol faziam-no sentir-se em casa.
- Está decidido, jantamos por aqui. Afirmou Brás assertivo.
- Então mas ainda agora almoçámos!  Exclamou Gomes de Sá. 
- Não há problema, fazemos tempo, damos uma volta pela vila, depois vamos até à praia e damos um mergulho, relaxamos um pouco e 'tá feito.
- 'Tá tá. E dinheiro para o jantar? Não sei se sabes o que é,  aquela coisa que atiraste ao mar no Portinho da Arrábida, não sei se estás a ver.
- Não há-de ser por isso, trouxeste a guitarra agora só tens de lhe dar uso. A ela e ás unhas que tens para tocá-la, ou vais deixá-la trancada na mala do carro durante toda a viagem? É só esperar que apareça um grupo de turistas. Tu tocas enquanto eu demonstro todo o meu esplendor como bailarino.
- Tu bailarino?  Cheira-me que ainda vamos ter de pagar a alguém para assistir a tamanha tragédia,  mas não custa tentar.
- Foda-se, estás a desdenhar da minha famosíssima veia de bailarino contemporâneo. Disse Brás enquanto ondulava os braços e arqueava as costas tentando transmitir a imagem de um golfinho a nadar no Sado.
- É mesmo isso, não ensaies mais que está perfeito. Agora é só eu me lembrar dos acordes do "Saber  a mar" dos Delfins e estão reunidas as condições para a ruína total. Ironizou Gomes de Sá disposto a tentar pôr em prática mais um mirabolante plano de Brás.
- Como é que um país tão pequeno pode conter tantas pequenas maravilhas esquina sim esquina não? Perguntou Brás. 
-Olha que a Croácia também não é muito maior e é igualmente intrigante e apaixonante. 
- Talvez tenhas razão. De qualquer modo somos uns sortudos por estarmos aqui.
Foram descendo até ao mar, em direcção à Praia do Ouro, onde estenderam as toalhas e deram um mergulho,  sentando-se depois a degustar um dos tais cigarros marroquinos de Brás.  Enquanto fumavam divagaram sobre esses pequenos países que tinham tudo para ser ricos e prósperos,  e que na realidade o eram, mas que eram entendidos como pobres,  como era o caso de Portugal e da Croácia. 
- Não sei que raio nos poderá faltar ó Brás,  temos tudo. Terra fértil,  um mar imenso, gente humilde e capaz. Talvez não tenhamos petróleo ou diamantes,  mas raios, isso são coisas que não matam a fome percebes?
- Se percebo, a maior riqueza está nas pessoas my friend.  E nisso posso atestar, como forasteiro que sou, que toda a riqueza dos cofres dos maiores impérios combinada não chegaria para comprar a alma de um verdadeiro lusitano. Ou sequer a sua palavra. 
O Sol já se punha no horizonte e a Lua assumia o seu turno no encadeamento do dia quando lentamente adormeceram, embalados pelo som das ondas do mar, um após o outro.
Acordaram já noite cerrada,  espantados por terem dormido tanto tempo, e subiram até à vila para procurarem um lugar onde comer.
- Que horas são isto ó Gomes? 
- Não faço ideia, aguenta aí que eu já te digo.  Deixa lá ver, foda-se! Onze e meia, espero que ainda haja algum restaurante a servir a esta hora.  Resmungou Gomes de Sá. 
- Então não há-de haver. Retorquiu Brás sempre optimista. 
Encontraram uma pequena tasca ainda aberta e cuja cozinheira estava ainda disponível para os servir.
Sentaram-se à porta com a guitarra e pousaram no chão um chapéu onde, se tudo corresse conforme o planeado,  as pessoas deixariam algumas moedas que dariam na melhor das hipóteses para pagar o jantar. Na pior não dariam para nada e teriam de se contentar com umas latas de sardinha com molho de tomate que eram a única coisa que restava no farnel, uma vez que os cigarros marroquinos tinham a particularidade de lhes abrir o apetite.
Passado meia hora tinham acumulado cerca de quinze cêntimos e começaram a desesperar, mais Gomes de Sá porque Brás acreditava sempre que o Universo nunca o iria deixar ficar mal.
- Não dá para jantar mas já dá para comprar uma pastilha para os dois.  Então e agora génio?  Ironizou Gomes de Sá. 
- E agora não faço ideia,  se pudesse sacava uma nota do olho do cu mas se é coisa que nunca resultou não era agora que ia resultar. Ou então é só abrir os braços e esperar que me caia uma nas mãos.  Respondeu Brás no preciso momento em que uma nota trazida pelo vento lhe aterrava na mão aberta.
- Viste? Isto foi o Universo a dar-me o troco. E  agora vamos jantar?
Entraram e descobriram que era dia de caldeirada de peixe lá no sítio.  Sentaram-se e ficaram à espera a salivar, aliciados pelo cheiro a salsa fresca acabadinha de cortar. Mal tiveram tempo de aquecer as cadeiras e já estavam a ser servidos pela dona Albertina que nem lhes deu hipótese de escolha ou menu porque aquele era o prato do dia, único e exclusivo. 
- Cheira-me só isto Gomes.  E olha-me para este prato,  dá vontade de mergulhar neste mar de sabores e cores apurado ao longo de gerações pelo saber de um povo. Se o mar e o fado tivessem uma criança, essa criança seria a caldeirada. Até porque às vezes as noites de fado também acabam em caldeirada. Divagou Brás. 
- Eu acho que tu bateste com a cabeça, com força, em algum lado quando eu não estava a ver, só pode. Mas lá que está perfeita não posso negar. Replicou Gomes de Sá. 
- Achas que ficamos por aqui hoje?
- Não sei, não me parece mal. Ou podemos estacionar no Meco e passar lá a noite, o que achas?
- Pode ser. Mas olha que eu não vou andar por lá com os tomates ao sol a dar, a dar, como vim ao Mundo 'tás a ouvir? 
- Estou a ouvir e até agradeço e acredito que mais gente agradeça imensamente que não o faças. Está decidido então,  é Meco não é? 
- Siga mon ami, joli pipi, ainda aqui estamos? 

estórias de encantar - sem um tostão furado

Chegados a Porto  Covo,  onde fizeram um desvio para um café matinal, seguiram pela faixa de costa que se estende entre a Praia do Salto, onde o mar se agitava em ondas que, com o vento certo, rebentavam em perfeitas formas tubulares ao se aproximarem da costa, e a praia de S. Torpes de ondas compridas e intermináveis,  ladeada por encostas rochosas e vizinha de uma inusitada central termo-eléctrica, num constante braço de ferro entre a Natureza e os feitos dos homens.  Que a Natureza vencera claramente naquele caso.
- E então Brás,  bem sei que não é a Croácia mas que me dizes boss? 
- A única coisa que me ocorre dizer é que ainda bem que não viemos pela A2.  E que já me podias ter mostrado isto antes. De resto nem sei que te diga.
- Nunca me ocorreu, às vezes ando tão assoberbado com os males da sociedade globalizada que me esqueço que este pequeno país tem o particular poder de nos surpreender a cada momento, vezes sem conta. Mesmo quando não lhe damos a devida importância. 'Tá no Ir? 
- Por mim...
Gomes de Sá inalou profundamente pela última vez aquele ar salgado e acelerou em direcção a Tróia,  já com todos os sentidos focados no almoço. 
Uma vez em Tróia apanharam o barco,  quase vazio.  Gomes de Sá olhava em volta e recordava com satisfação os dias em que ficava  horas na fila só para chegar ao barco, inventando aventuras nas matas circundantes, nunca perdendo de vista o seu pai que estoicamente resistia dentro do carro àquelas intermináveis horas de espera.
Desligou o motor e recostou-se no banco a saborear aquele doce e mareio embalo que lhe era tão familiar. Saíram do carro e dirigiram-se para o convés onde foram recebidos por uma paisagem a que nem em sonhos poderiam fazer justiça,  por muito que tentassem. Mais uma vez um rio, correndo incessantemente para o mar onde desaguava numa idílica baía rodeada por encostas verdejantes e pimpilantes de vida.
De quando em vez um grupo de golfinhos mostrava-se a quem atravessava o rio com  espontâneas brincadeiras e acrobacias.
Gomes de Sá olhou para Brás e esboçou um comentário, que não teve hipótese de terminar porque Brás se virou para ele dizendo: 
- Eu sei Gomes, eu já percebi. E agradeço que estejas disposto a partilhá-lo comigo. 
Gomes de Sá não respondeu, limitou-se a admirar a paisagem.
Estavam já a aproximar-se de terra e foram para o carro prepararem-se para sair. Quando atracaram apressaram-se a encontrar um sitio onde almoçar bem, o que em terras de peixe fresco e do chôque frrite não é de todo difícil. Sentaram-se numa pequena esplanada, mesmo ao lado do grelhador para facilitar a vida ao único empregado, que era por sua vez também o patrão. Começaram por beber um Moscatel de Setúbal para abrir ainda mais o apetite e decidiram-se por uma grelhada mista, de peixe claro, a qual  deitaram abaixo enquanto calmamente bebiam um vinho verde à temperatura ideal.
No fim Brás pagou a conta com uma nota que tirou de trás da orelha esquerda.
- Olha lá ó Brás,  nunca pensaste pôr o dinheiro no banco como as pessoas normais? Perguntou Gomes de Sá. 
- Eu contava-te a história dos bancos nos últimos 100 anos ó Gomes mas depois de uma refeição destas, num sítio como este, era capaz de me cair mal.
Respondeu Brás olhando-o de alto a baixo com olhar reprovador.
- Vive a vida Brás,  essa guerra não é tua.
- Eu vivo, eu até viro tudo do avesso e arraso com  tudo à minha volta, sempre ao máximo.  Só não sei  quantas gerações mais, depois de nós, poderão fazer o mesmo.
Agradeceram ao cozinheiro,  que era o mesmo que o empregado de mesa e patrão, e entraram de novo no carro fazendo planos de ir directos a Lisboa. 
Gomes de Sá decidiu mais tarde fazer um desvio e passar na Serra da Arrábida, uma vez que estavam tão perto.  Encostaram o carro no alto da encosta,  com vista para a surreal baía natural. Saíram do carro esmagados com a energia que os envolvia, vinda das pedras,  do mar e das árvores. Aproximaram-se do precipício e ficaram a observar embasbacados o infinito oceano, embalados pelo turpor alcoólico consequência de um almoço bem regado. 
- Se isto não é suficiente para preencher a alma de um homem de contentamento diz-me então o que poderá ser, isto? Questionou Brás enquanto atirava ao ar um maço de notas que desapareceu lá em baixo no oceano.
- Lindo! Outra vez Brás? Bela hora para o teu cérebro decidir parar. Outra vez. Mais lindo ainda vai ser ouvir a explicação que vais dar acerca de como pensas chegar à Croácia,  a três mil e quatrocentos quilómetros daqui se bem te lembras,  sem um tusto no bolso.
- Ups... Se calhar deixei-me levar pelas emoções.  Sabes Gomes, quando encontro lugares assim como este,  quase encantados,  sinto-me envolvido num abraço com a Natureza, que me preenche muito para além do que alguma vez julguei possível. Com certeza muito mais do que qualquer outro bem que eu possa adquirir com dinheiro. De qualquer modo é tarde de mais, os peixes que se divirtam, que vão às compras ou coisa do género. 
- Tudo bem. Mas isso não explica com vamos chegar à Croácia de bolsos vazios.
- Vive a vida Gomes.  Disse Brás piscando o olho esquerdo,  porque o direito não conseguia e acabava sempre por piscar os dois ao mesmo tempo passando completamente despercebido. 

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Um pouco isto

E na mesa do meu quarto sou menos reles, empregado e anónimo, escrevo palavras como a salvação da alma e douro-me do poente impossível de montes altos vastos e longínquos...

Fernando Pessoa

Ai Margarida


OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFOpdf
Álvaro de Campos

Ai, Margarida,

Ai, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que farias tu com ela?
— Tirava os brincos do prego,
Casava c'um homem cego
E ia morar para a Estrela.
Mas, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que diria tua mãe?
— (Ela conhece-me a fundo.)
Que há muito parvo no mundo,
E que eras parvo também.
E, Margarida,
Se eu te desse a minha vida
No sentido de morrer?
— Eu iria ao teu enterro,
Mas achava que era um erro
Querer amar sem viver.
Mas, Margarida,
Se este dar-te a minha vida
Não fosse senão poesia?
— Então, filho, nada feito.
Fica tudo sem efeito.
Nesta casa não se fia.
Comunicado pelo Engenheiro Naval
       Sr. Álvaro de Campos em estado
                de inconsciência
                         alcoólica.
1-10-1927
Álvaro de Campos - Livro de Versos .  (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.
 - 70.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

estórias de encantar - marés vivas

- Foda-se ó Brás de vez em quando parece que te pára o cérebro.  Disse Gomes de Sá ainda meio a acordar.
- Quem me dera. O pior é que 'tá sempre a bombar, ainda há bocado me deitei e passado meia hora 'tava de pé,  fresco que nem uma alface.  Não sei o que se passa.  Replicou Brás.
- O que se passa é que tu bates mal e não consegues parar sossegado.  Desconfio que se arranjar maneira de te ligar umas baterias ao cu por dez segundos consigo ter electricidade à borla para o ano todo cá em casa. Nem sei como é que conseguiste dormir meia hora sem te explodir a cabeça de inquietação. 
- Olha que eu não 'tou a gozar, ando com um formigueiro nas costas que não me deixa parar quieto, uma sensação de ter alguém a empurrar-me,  só não sei para onde. Acho que devíamos fazer uma pequena viagem,  alinhas nessa? Estamos em Setembro,  isto por aqui vai morrer de qualquer maneira e até já sei para onde vamos.  O que dizes?
- Digo que primeiro tens de me dizer o sítio, que eu não vou assim às cegas com um gajo que uma vez me ligou para irmos jantar a Lisboa e fui acabar a trabalhar num Freak Show em Berlim durante três meses com uma mulher barbuda, dois anões e um papagaio perneta a fazer reinterpretações de Shakespeare.
- Não me digas que ainda estás ressentido com isso, continuo a achar que até correu muito bem. Mas tenta lá adivinhar para onde vamos, aposto que vais gostar. 
- Sei lá,  a uma hora destas,  não faço ideia.  Sagres? Porto? Feijó?
- Não te estás a esforçar,  mais uns quilometrozitos, isso quase nem se pode chamar uma viagem.
- O.k. quantos quilometrozitos mais?
- Nada de especial, uns três mil e poucos mais. Croácia meu amigo, o melhor país do mundo. Trau,  e agora quem é que é o boss?
- Nunca pensei que o dia chegasse em que ias dizer alguma coisinha de jeito ó Brás,  devo dizer-te que estou até um nadinha emocionado. Sem dúvida a melhor coisinha que já te ouvi propor nos últimos tempos, só não sei se tenho guita para isso.
- Tranquilo, eu financio a cena toda, só tens de vir e aproveitar a viagem. E conduzir claro, porque eu só tenho carta de bicicleta.
- 'Tá feito então,  quando é que tás a pensar em ir?
- Por mim é só dar uma salto à casa, encher a mochila e está a andar.
- Ok, então eu já te apanho por lá. Vê se não te esqueces de nada porque eu desta vez não volto atrás como é costume.
- Mais oui mon ami. Gritou Brás já a pedalar na sua bicicleta a todo o gás em direcção a casa. Quando chegou reparou que tinha perdido a sobrancelha esquerda pelo caminho e voltou atrás para procurá-la. Seguiu exactamente pelo mesmo caminho,  sempre atento ao chão para ver se a via, acabou por encontrá-la enrolada num dos raios da bicicleta a tremer de frio e meio enjoada de tanto girar. Guardou-a no bolso para a aquecer um pouco e pedalou de novo até casa. Preparou a mochila e foi até à tasca buscar mantimentos e deixar um aviso na porta para os clientes habituais. Organizou um cabaz com conservas, presunto, pão e outras iguarias e colou na porta um papel onde podia ler-se "Volto já". Trancou tudo e passou em casa de Mark Snuggels, de onde saiu com uma pequeno papel com uma morada que guardou no bolso das calças. 
Quando chegou a casa Gomes de Sá batia na porta, que se queixava e bem porque a casa até tinha campainha e Brás não era surdo por isso não havia necessidade de ser violento. 
- Como é que é Brás 'tás pronto? Perguntou Gomes de Sá contagiado em 1° grau pela inquietação do amigo.
- É só apanhar a mochila e 'tá no ir. Respondeu Brás sentindo um arrepio subir-lhe pelas costas acima até ao cérebro,  onde explodiu em ondas eléctricas que o conectaram ao universo, como se ele próprio fosse uma espécie de antena a receber e a reenviar energia  pura, matéria celestial. Algo lhe dizia que aquela era a direcção por que esperava.
Entrou de novo e agarrou na mochila, confirmou que tinha tudo o que precisava,  deu uma volta por casa para ver se se lembrava de mais alguma coisa que pudesse fazer-lhe falta e saiu. Entrou no carro e seguiram viagem. 
- Então isto vai ser assim.  Disse Brás sacando de um mapa, entusiasmado como sempre. Vamos directos a Madrid,  depois seguimos para Barcelona,  a seguir Montpellier,  Marselha e por aí afora.  Quando quisermos paramos e apreciamos a vista. Que dizes?
- Por mim tudo bem, desde que dê para passar em Lisboa primeiro.
- Ok, murmurou Brás fingindo-se desiludido mas sorrindo por dentro como que festejando uma pequena vitória. 
Decidiram ir directos a Lagos e daí subir até Lisboa pela Costa Vicentina,  sem agenda nem hora marcada para sair ou chegar. Podiam sentir o Inverno a chegar no vento que entrava pelas janelas e no céu que escurecia mais cedo do que estavam já habituados pelo Verão.  O mar agitava-se lá em baixo fazendo adivinhar as marés vivas de Setembro, em que se revoltava e quebrava a monotonia das águas calmas e serenas do Sul e se mostrava em todo o seu poder.
Mais tarde, com o cair da noite,  começaram a sentir fome e decidiram parar junto à foz do rio Mira para abastecer com uma feijoada de búzios e umas tiras de moreia frita. Para acompanhamento um jarro de tinto com Vila Nova de Milfontes como pano de fundo, na outra margem do rio.
Brás não conseguia tirar os olhos do céu,  iluminado como nenhum outro que conhecera por milhões de estrelas brilhantes.
- Foda-se.  Deixou ele escapar como quem acaba de levar um murro no estômago.
- Pois. Intrometeu-se Gomes de Sá. É o Alentejo boss, nem sabes se te hás-de vir ou borrar as cuecas não é? Disseram-me isso uma vez e penso que se aproxima bastante daquilo que sinto debaixo deste céu.
- Eu por mim já não saio daqui hoje.
- Na boa, com um saco-cama passa-se bem aqui uma noite.
- Cacete! Eu bem me estava a parecer que me tinha esquecido de alguma coisa.
- Sem stress, amanhã passamos na vila e compras outro. Por hoje vais ter de te orientar,  dorme no carro, cobre-te com arbustos, tapa-te com areia, o que quiseres.
- Com esta paisagem eu até durmo é todo nu na areia.
- É vai ser lindo quando a dona Rosa e o ti Isalindo chegarem de manhã para abrir o estaminé.
Brás fez sinal à senhora que estava por trás do balcão que se dirigiu à mesa com dois copos e uma garrafa de aguardente e os serviu antes de pegar numa caneta e começar a fazer a conta na toalha de papel. Ele sacou um maço de notas de dentro da meia direita e pagou com prazer. Estavam contentes, preenchidos no corpo e na alma por aquela refeição temperada com a paixão de quem ama o que é da sua terra. Andaram até à beira mar para ajudar a digerir e sentaram-se na areia enquanto Brás enrolava um dos seus cigarros marroquinos.  Fumaram-no enquanto desfrutavam da magia daquele lugar na boca do rio, onde o tempo parecia ter parado. No ponto certo, onde o ponteiro dos minutos roça suavemente a perfeição,  sem a incomodar.  Um silêncio pacificador preenchia o ar, salpicado aqui e ali por ruídos causados pela bicharada que povoava as redondezas.
Ali, o rio chegava finalmente ao seu destino,  para onde corria e continuaria a correr incessantemente, enquanto fosse rio. Inquieto, a chegar ao fim mas sempre a regressar ao início, uma e outra vez. Ali sentiram a paz aconchegá-los enquanto se deixaram adormecer, sem resistir,  sob aquele tecto estrelado.
Acordaram na manhã seguinte com areia acumulada nos mais recônditos orifícios dos seus corpos, deram um mergulho e seguiram para a vila, do outro lado da ponte, onde Brás foi à procura de um saco-cama enquanto Gomes de Sá tratou de os abastecer de croissants recheados de uma famosa pastelaria local. Continuaram para Norte e decidiram seguir até Tróia e apanhar o ferry para Setúbal porque Brás só conhecia o caminho por autoestrada.