Acabou o seu turno, passou pela praia para se temperar de sal e rumou para casa do Ti Zé Inácio, ou Ináiçe como diriam os locais. Entrou pela cozinha, onde a dona Aldomira estava já cercada de tachos por todos os lados, alguns maiores do que ela. Mas ela chegava para todos e ainda sobrava para dar uns tabefes a quem tentasse meter a unha nalgum deles antes de estar tudo pronto.
- Moce dum rai, deslarga-me da mã. Nã tás vende que me tás xaringando ist tude? Gritava enquanto Zé do Pipo corria à sua frente aos ziguezagues para se desviar de algum objecto voador que pudesse de repente vir na sua direcção. Gomes de Sá correu também mas em direcção ao frigorífico para tirar de lá uma mini para reanimar a alma que começava a quebrar com o calor, deviam estar uns 32 graus. Em dois golos só sobrou a garrafa, tê-la-ia ingerido também se Brás não tivesse chegado com outra na hora exacta em que começava a morder o gargalo. Sentaram-se no chão junto à velha figueira, passava uma ligeira brisa e o céu desfilava em tons de azul e laranja, exibicionista, como que a anunciar o fim do dia mas ao estilo de Bollywood. Zé do Pipo juntou-se a eles minutos mais tarde munido de uma guitarra e um alguidar com gelo onde repousavam umas quantas reluzentes garrafas de cerveja.
Ali sentados, a comer figos e a conversar, podiam sentir o tempo a passar devagar, podiam quase agarrá-lo, apertá- lo entre os dedos e espremê-lo porque era um tempo que tinha muito sumo, ao contrário do que Gomes de Sá estava habituado na grande cidade onde mal tinha tempo para o agarrar. Passava a correr em grandes lufadas de ar que roubavam horas aos dias tornando-os muito mais curtos e por isso menos preenchidos, independentemente da agenda de cada um. Ali podia sentir-lhes o sabor, ainda que alguns dias surgissem mais amargos do que outros, e entender-lhes o sentido por mais confuso que fosse por vezes. Qualquer lugar onde se podia dar um mergulho à hora de almoço era para si perfeito, porque abalava o próprio conceito de tempo e substituía a instituída hora de almoço pela hora do mergulho, do pé na areia e do calção. Não era certamente o paraíso na Terra, até porque continuava em Portugal, país de muitos vícios enraizados, todos eles nada saudáveis. Mas estava muito perto.
- Ó Zé, achas que a tua avó precisa de uma ajuda lá dentro? Perguntou.
- Não sei mas nem penses que vou lá perguntar, ainda me dá uma dentada numa orelha e depois tenho de lhe pôr o açaime. Ou pior mandá-la abater, e depois já não há quem saiba esta receita de ensopado. Brincou Zé do Pipo.
- Eu vou lá ver. Disse Gomes de Sá depois de beber o resto da sua cerveja. Causava-lhe sempre alguma inquietação o facto de Dona Aldomira fazer tudo sozinha, apesar de já a conhecer o suficiente para saber que se opunha veementemente a qualquer tipo de ajuda, viesse ela de onde quer que fosse. Dirigiu-se à cozinha onde o lume estava já desligado e o famoso ensopado repousava na enorme panela. Zé Inácio estava sentado à porta de casa a fumar um cigarro e Aldomira andava num rebuliço entre pratos, copos e talheres que levava do armário para a mesa num ritmo frenético a que já estava habituado por esta altura. O truque era abrandá-la de alguma maneira para depois lhe surripiar gentilmente a tarefa em mãos sem que ela notasse, o que era o mais complicado. Normalmente pedia-lhe algo que estivesse suficientemente longe para que ela tivesse de se deslocar e depois quando ela regressasse estaria ele tão imiscuido na tarefa que ela já não teria hipótese de o afastar. E foi o que fez, pediu-lhe um copo de água e ela lá foi, quando voltou estava tudo pronto.
- Moce do diébe, eu bem me parecia, a pedir-me água que é coisa que só usa para se banhar. Ralhou ela nada surpreendida porque já estava habituada a que ele tentasse sempre, de uma maneira ou de outra, ajudá-la nas suas tarefas, coisas de gente da cidade pensava.
Lá fora o Sol desaparecia sob o mar, como se mergulhasse lentamente no oceano, deixando na água um rasto cor de fogo enquanto se apagava ao longe. Os pássaros povoavam as árvores e enchiam o ar de um ruído quente ao regressarem a casa, outro conceito que Sá desconhecia. Sofria de uma forma rara de existência indigente, em que inexplicavelmente se sentia em casa em qualquer lugar. Sonhara ser palhaço malabarista numa troupe de desajustados, rasgando vida adentro com unhas e dentes, fabricando com o tecido do tempo cada minuto do seu dia, passar noites em branco alimentando-se de música e poesia, parando aqui e ali para animar as massas e seguir viagem. Com o tempo, e com muita ginástica diga-se de passagem, lá se conseguiu encaixar na pequena gaveta que lhe era reservada na tão reservada sociedade.
- Prá mesa. Gritou Aldomira enquanto batia com a colher de pau na tampa da panela.
Zé e Brás levantaram-se e apressaram-se para a mesa a salivar, deixando para trás o alguidar vazio e a guitarra encostada à figueira.