domingo, 31 de agosto de 2014

estórias de encantar - a meio gás

Acabou o seu turno, passou pela praia para se temperar de sal e rumou para casa do Ti Zé Inácio, ou Ináiçe como diriam os locais. Entrou pela cozinha, onde a dona Aldomira estava já cercada de tachos por todos os lados, alguns maiores do que ela. Mas ela chegava para todos e ainda sobrava para dar uns tabefes a quem tentasse meter a unha nalgum deles antes de estar tudo pronto.
- Moce dum rai, deslarga-me da mã. Nã tás vende que me tás xaringando ist tude? Gritava enquanto  Zé do Pipo corria à sua frente aos ziguezagues para se desviar de algum objecto voador que pudesse de repente vir na sua direcção. Gomes de Sá correu também mas em direcção ao frigorífico para tirar de lá uma mini para reanimar a alma que começava a quebrar com o calor, deviam estar uns 32 graus. Em dois golos só sobrou a garrafa, tê-la-ia ingerido também se Brás não tivesse chegado com outra na hora exacta em que começava a morder o gargalo. Sentaram-se no chão junto à velha figueira, passava uma ligeira brisa e o céu desfilava em tons de azul e laranja, exibicionista, como que a anunciar o fim do dia mas ao estilo de Bollywood. Zé do Pipo juntou-se a eles minutos mais tarde munido de uma guitarra e um alguidar com gelo onde repousavam umas quantas reluzentes garrafas de cerveja.
Ali sentados, a comer figos e a conversar,  podiam sentir o tempo a passar devagar, podiam quase agarrá-lo,  apertá- lo entre os dedos e espremê-lo porque era um tempo que tinha muito sumo, ao contrário do que Gomes de Sá estava habituado na grande cidade onde mal tinha tempo para o agarrar. Passava a correr em grandes lufadas de ar que roubavam horas aos dias tornando-os muito mais curtos e por isso menos preenchidos, independentemente da agenda de cada um. Ali podia sentir-lhes o sabor, ainda que alguns dias surgissem mais amargos do que outros, e entender-lhes o sentido por mais confuso que fosse por vezes. Qualquer lugar onde se podia dar um mergulho à hora de almoço era para si perfeito, porque abalava o próprio conceito de tempo e substituía a instituída hora de almoço pela hora do mergulho, do pé na areia e do calção. Não era certamente o paraíso na Terra, até porque continuava em Portugal, país de muitos vícios enraizados, todos eles nada saudáveis. Mas estava muito perto.
- Ó Zé, achas que a tua avó precisa de uma ajuda lá dentro? Perguntou.
- Não sei mas nem penses que vou lá perguntar,  ainda me dá uma dentada numa orelha e depois tenho de lhe pôr o açaime. Ou pior mandá-la abater, e depois já não há quem saiba esta receita de ensopado. Brincou Zé do Pipo.
- Eu vou lá ver. Disse Gomes de Sá depois de beber o resto da sua cerveja. Causava-lhe sempre alguma inquietação o facto de Dona Aldomira fazer tudo sozinha, apesar de já a conhecer o suficiente para saber que se opunha veementemente a qualquer tipo de ajuda, viesse ela de onde quer que fosse. Dirigiu-se à cozinha onde o lume estava já desligado e o famoso ensopado repousava na enorme panela. Zé Inácio estava sentado à porta de casa a fumar um cigarro e Aldomira andava num rebuliço entre pratos, copos e talheres que levava do armário para a mesa num ritmo frenético a que já estava habituado por esta altura. O truque era abrandá-la de alguma maneira para depois lhe surripiar gentilmente a tarefa em mãos sem que ela notasse, o que era o mais complicado. Normalmente pedia-lhe algo que estivesse suficientemente longe para que ela tivesse de se deslocar e depois quando ela regressasse estaria ele tão imiscuido na tarefa que ela já não teria hipótese de o afastar. E foi o que fez, pediu-lhe um copo de água e ela lá foi, quando voltou estava tudo pronto.
- Moce do diébe, eu bem me parecia, a pedir-me água que é coisa que só usa para se banhar. Ralhou ela nada surpreendida porque já estava habituada a que ele tentasse sempre, de uma maneira ou de outra, ajudá-la nas suas tarefas, coisas de gente da cidade pensava.
Lá fora o Sol desaparecia sob o mar, como se mergulhasse lentamente no oceano, deixando na água um rasto cor de fogo enquanto se apagava ao longe. Os pássaros povoavam as árvores e enchiam o ar de um ruído quente ao regressarem a casa, outro conceito que Sá desconhecia. Sofria de uma forma rara de existência indigente,  em que inexplicavelmente se sentia em casa em qualquer lugar. Sonhara ser palhaço malabarista numa troupe de desajustados, rasgando vida adentro com unhas e dentes, fabricando com o tecido do tempo cada minuto do seu dia, passar noites em branco alimentando-se de música e poesia, parando aqui e ali para animar as massas e seguir viagem. Com o tempo, e com muita ginástica diga-se de passagem, lá se conseguiu encaixar na pequena gaveta que lhe era reservada na tão reservada sociedade.
- Prá mesa. Gritou Aldomira enquanto batia com a colher de pau na tampa da panela.
Zé e Brás levantaram-se e apressaram-se para a mesa a salivar, deixando para trás o alguidar vazio e a guitarra encostada à figueira. 

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

estórias de encantar - entre um bom cubano e o mais sofisticado cabernet sauvignon- parte 2

Começou por limpá-las cortando tudo o que estivesse seco e desanimado,  de baixo para cima para poupar tempo. A seguir pegou no escadote e começou a abrir , a golpes de tesoura,  pequenas janelas aqui e ali na copa de uma delas para deixar entrar a luz, ao que a oliveira agradeceu de imediato com  uma pequena vénia. Fez o mesmo com as outras cinco, ao descer do escadote depois de podar a última árvore ficou sem uma manga da camisola, arrancada por uma oliveira armada em activista, e pensou que podia aproveitar para fazer uma tatuagem uma vez que já não tinha a manga no caminho. 
Enquanto isso, algures na Serra do Caldeirão,  Brás e Zé do Pipo regressavam ao carro depois de uma noite de caça. 
- Aposto que tem pr'aí uns duzentos quilos.  Inflectiu Zé. 
- Hum, talvez cento e oitenta e cinco. Reagiu Brás cauteloso.
- Então e o abestúncio do Gomes de Sá já respondeu à mensagem? 
- Achas? Aquilo é bicho que é alérgico ao telemóvel,  eu já lhe mando outra.
- Que achas de pararmos aqui um pouco para meditar? Perguntou Zé do Pipo estendendo qual passadeira vermelha um dos seus raros sorrisos e cerrando ainda mais olhos.
- Só se for do Hassan. Respondeu Brás puxando de um sorriso detrás da orelha.
 Pousaram a caça no chão e encostaram-se a um velho carvalho enquanto Zé do Pipo enrolava numa mortalha uma mistura de tabaco e uma perfumada especiaria marroquina. Acendeu o cigarro e, enquanto puxava pela primeira vez, os olhos  já de si pequenos cerraram-se ainda mais, sendo quase impossível perceber se estavam abertos ou fechados. Expirou uma nuvem de fumo que os deixou às escuras durante vários segundos,  apesar de pequeno era muito concentrado e parecia ter dois pares de pulmões. 
- Para mim isto não fica a dever em nada ao mais fino dos Champagnes, ou ao mais refinado vinho, nem mesmo aos mais cobiçados charutos enrolados em coxas de mulheres nativas em ilhas distantes. Dissertava enquanto erguia o cigarro no ar fazendo menção de o partilhar. Brás aceitou e agradeceu,  travou duas vezes antes dos seus grandes olhos azuis ficarem raiados de vermelho e a brilharem quase fluorescentes.
Estavam cansados, mas apesar de tudo satisfeitos, afinal não iam para casa de mãos a abanar.  Tinham passado a noite na serra a rondar as armadilhas que tinham montado para caçar um javali,  coisa que faziam uma vez por ano, normalmente a três mas este ano Gomes de Sá tivera de faltar para tratar do jardim de uma madame qualquer.
Muitas das armadilhas encontravam-se desarmadas e só quase pela manhã tiveram sorte. Entretanto tinham já caçado todo o tipo de bichos mas javali nem vê-lo,  chegaram mesmo a acertar num unicórnio,  coisa que apenas os irritou porque já era o terceiro naquele ano. Além disso a carne de unicórnio era extremamente indigesta.
No jardim de Madame Dupuis Gomes de Sá arrumava o seu material para seguir para o seu trabalho de Verão num supermercado local onde colocava produtos em prateleiras,  arrumadinhos em filas insuspeitas mas pensadas à exaustão para levar o cliente a metê-los no cesto sem pensar duas vezes. Quer precisasse ou não deles. Quatro horas por dia, uma semana à tarde e outra à noite, mergulhado em paletes de refrigerantes, sumos variados,  leite, água e todo o tipo de bebidas alcoólicas. Tudo fechado e selado, para mal dos seus pecados, se ao menos fosse bar aberto sempre se passavam melhor aquelas tortuosas horas.
12 de gin, 14 de vodka, 8 de rum, confirma. E umas pedrinhas de gelo, uma água tónica e um copo não se arranjava? Ou alguém das frutas e legumes que lhe atirasse umas limas para preparar uma caipirinha a ver se melhorava o ambiente. Sonhava alto a ver se tornava o vagaroso ponteiro do relógio um pouco mais rápido.
Sentiu o bolso estremecer, era uma mensagem de Brás no seu telemóvel a confirmar o ensopado de javali mais logo na casa dos avós de Zé do Pipo. 

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

estórias de encantar - entre um bom cubano e o mais sofisticado cabernet sauvignon- parte 1

Despertou sinuosamente com o despertador a berrar-lhe aos ouvidos, frenético. Era segunda feira, dia de tratar do jardim de Huggette Dupuis, uma septuagenária francesa que se fixara no Algarve depois de o seu marido ter fugido com uma das enfermeiras do lar onde planeavam ficar juntos até ao fim dos tempos, ou até o primeiro deles  bater as botas. Senhora bem disposta, de gargalhada fácil e espontânea. Ainda guardava alguma genica dentro de si mas não a suficiente para cuidar de um jardim com duzentos metros quadrados sozinha, soubera de Gomes de Sá através de uma vizinha que tratou de os apresentar um ao outro no dia seguinte. Ficara então decidido que, segunda sim, segunda não, lá estaria ele para dar uma ajuda a Madame Dupuis.
 Saltou da cama espicaçado pelo cheiro a terra, a madeira acabada de cortar, a alfazema e rosmaninho que sentia já a percorrer o seu nervo olfatório e a alojar-se bem no meio da testa, mesmo por cima do nariz. Vestiu-se, calçou as botas,  passou pela cozinha para ligar a máquina do café e foi lavar a cara e os dentes.  Bebeu o café enquanto espreitava as últimas notícias online e esfregou- se no gato ao sair. Carregou o carro e depois confirmou que não lhe faltava nenhuma ferramenta. Quando finalmente se sentou de imediato se levantou,  num salto que o fez bater ruidosamente com a cabeça no tejadilho.  Tinha-se sentado em cima de um objecto pontiagudo, que não conseguia identificar porque estava enterrado 3cm na nádega direita, procurou uma pinça mas como não encontrou tratou de o retirar com uma enxada. Era um brinco, que guardou e seguiu para casa de Huggette. 
Quando chegou já ela andava de volta das flores, que conforme o acordo eram exclusivamente da sua responsabilidade,  não podendo Gomes de Sá sequer opinar ou meter o bedelho em assuntos de flores. Hoje seriam as oliveiras o alvo da sua atenção.
Estava calor, o ar estava abafado como se o céu estivesse apenas a metros da sua cabeça,  e cada vez mais perto, parecia que o Verão se tinha guardado mais uma vez para Setembro insensível às preces de milhares de turistas que o tinham esperado durante todo o Agosto.  Eram nove da manhã e já suava em bica em cima do escadote,  dando uns cortes aqui e ali para limpar e manter uma silhueta o mais natural possível.  Nada de linhas rectas ou bolas, coisas que o irritavam na paisagem superpovoada por palmeiras,  tapetes de relva e outras aberrações que só serviam para sorver quantidades inimagináveis de água.  Manias importadas por pessoal que caía facilmente em tendências e modas, por mais absurdas que fossem.
Já para não falar nas intermináveis horas que tinha que passar a correr atrás do corta-relva,  quilómetros quadrados da mais verde monotonia.  Verde, uma cor que de monótona não tinha nada, e o raio da relva dava-lhe vontade de enrabar o coelhinho da páscoa, assassinar criancinhas, cortar os próprios pés para não ter de dar razão a quem se lembrou de dizer que andar na relva descalço era bom. E a verdade é que o era, mas isso não significava cobrir o país de alto a baixo com ela raios. Aos poucos ia descobrindo, ali debaixo do sol, um ódio de estimação.  Valia-lhe o facto de Madame Dupuis não ter um centímetro que fosse de relva no seu jardim.  Fez uma pausa para um golo de água e reparou que tinha uma mensagem nova no telemóvel. Tentou abri-la mas apagou-a sem querer, ficou curioso por saber de quem era mas como não havia nada a fazer voltou ao trabalho. Faltavam ainda seis oliveiras.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

estórias de encantar - travessa da espera

Margarida conduzia para Norte pela estrada nacional 1, ansiosa por chegar a casa, um apartamento na esquina da Travessa da Espera com a Rua do Norte, curiosa localização para alguém de uma geração por vezes desorientada, à espera de ver a luz como era a sua. Nascida no final da década de 70 quando o país acordava ainda dos anos negros da ditadura e se reerguia aos poucos. Caótico,  fervilhante, sedento de progresso, onde tudo estava por acontecer e onde tudo podia ser feito, pelas pessoas, para as pessoas.  E foi com estes valores que cresceu e se fez mulher, para mais tarde descobrir que não havia mais lugar para valores que não os monetários.
Pragmática, como qualquer mulher, não deixara que isso a impedisse de procurar a sua felicidade, ou continuar à espera dela no seu cantinho em pleno Bairro Alto, recente aquisição consequência de um nada recente sonho de morar no coração de Lisboa, um pouco afectado pelo colesterol por estes tempos mas ainda assim capaz de nos deixar sem pio.
Já só pensava em chegar a casa, tomar um duche, estatelar-se na cama e reconectar- se com o mundo no seu tablet por uns minutos.  Mais tarde iria preparar um jantar para si e para Rita, uma amiga de escola de quem se tornara inseparável de há uns anos para cá. Mas ainda nem estava na Mimosa e ainda tinha de chegar a Lisboa, fazer umas compras para mais logo, tomar um duche, passar os mais variados cremes pela pele, actualizar o perfil do Facebook,  ver as últimas novidades no Twitter e  fazer o jantar.
Por isso decidiu parar para tomar um café e arejar as ideias,  sentou-se numa mesa virada a oeste porque era de onde vinha o vento e desatarrachou a orelha esquerda, que era a que estava de feição. Pousou a orelha na mesa enquanto bebia o café e reparou que lhe faltava um brinco, no fim enroscou-a de novo, pagou e seguiu caminho.
Era suposto já estar em casa mas ficara na cama a desfrutar daquela manhã de fim de Verão algarvia em que o vento temperava o ar, no ponto certo, cozinhando uma dócil e refrescante brisa que a embalava numa sesta com cheiro a mar, que lhe fazia lembrar outros tempos. Tempos em que adormecia aninhada  na tranquilidade rouca da voz do seu pai, lá longe. Em que, não estando frio, ansiava por se cobrir, com um lençol que fosse, só para ter aquela sensação quentinha de estar no Inverno, e sem outras preocupações a não ser  pegar na bicicleta e pedalar até ao fim do Mundo depois de comer. E assim ficava semi adormecida até acordar com o sussurro doce da voz da sua mãe anunciando a hora do almoço.
Não estava arrependida, porém atrasada,  pensava enquanto empurrava o pedal do acelerador o suficiente para se deslocar a uma velocidade consonante com a sua condição. Nada disto teria acontecido se não tivesse saído na noite anterior, mas estava a precisar. E a noite estava a pedi-las, principalmente depois do triste episódio com o peixe aranha ao fim da tarde, se bem que conhecera aquele moreno de olhos de água que lhe administrara os primeiros socorros e com quem combinara um jantar que não chegou a acontecer. O mesmo que, ironia das ironias, mais tarde veio a encontrar no bar do seu amigo Mark Snuggels, que conhecera no Bairro Alto há uns anos atrás.
Continuava moreno, intrigante, mas cambaleava de um lado a outro do balcão como que a tirar-lhe as medidas claramente intoxicado. Mas não se esquecera dela, chamou-a à parte e balbuciou umas quantas embrulhadas palavras acerca de umas correntes que se vendiam em África, que eram usadas para aquecer o coração e de como eram felizes os pescadores de sereias na torre da igreja, a dispararem como se fossem snipers mas sem espingardas. Ela fingiu que percebeu e convidou-o para sair dali, para apanhar um pouco de ar e espairecer a cabeça.  Ele disse-lhe para ir andando à frente e que a encontrava no parque de estacionamento em frente à praia. E assim fez. Quando apareceu, passado meia hora, trazia uma garrafa de Muralhas numa mão e o pé de um copo e cinco centímetros de um balão na outra, ela tratou de  confortar a garrafa enquanto ficaram a conversar pela noite dentro numa pequena praia recôndita que ela nem sabia que existia.  Mais tarde deram um mergulho no mar e ela levou-o a casa porque ele não estava em condições de conduzir. Estranhou que ele morasse no meio de duas laranjeiras mas, como  não conhecia os hábitos das gentes do campo, deixou-o e chamou um táxi, que demorou uma eternidade a chegar porque se esquecera de virar na terceira laranjeira à direita depois da alfarrobeira velha e antes daquele ponto onde a estrada faz assim uma espécie de s invertido, tendo ido parar exactamente ao local de onde tinha saído. Quando chegou, o taxista vinha indignado,  e o seu bigode ainda mais, agitando-se furiosamente para cima e para baixo e de um lado para o outro.
- Minha senhora,  prá próxima basta dizer-me que é pró laranjal do Ti Mendes, ando às voltas hà três quartos de hora por amor da santa, em três quartos de hora fiz eu quatro filhos minha senhora. O bigode batia o pé irritado e fixava Margarida nos olhos há espera de uma resposta, ou pelo menos um pedido de desculpas. 
- Prá próxima eu chamo outro taxista, é para a praia dos pescadores,  se faz favor. Limitou-se ela  a dizer enquanto fechava a porta do táxi.
Chegou a casa já o sol ia alto, abriu as persianas e deixou- se cair na cama, encantada com aquele invulgar sapo que teimava em aparecer no seu caminho. Sentiu o vento fresco na cara enquanto foi fechando lentamente os olhos, as pálpebras vencidas pela gravidade, uma sensação de satisfação,  puro contentamento por uma guerra vencida sem recurso a armas.
- São um euro e sessenta e cinco cêntimos, se faz favor.
- BOA TARDE, um euro e sessenta e cinco se faz favor. Dizia uma voz distante. 
Estava na Ponte 25 de Abril, quase em casa. Eram nisto umas sete da tarde.

sábado, 23 de agosto de 2014

estórias de encantar - na reserva

Quando acordou estava fora da estrada, o motor ainda rosnava desafinado,  os pés em cima do tablier numa posição pouco ortodoxa e um zunido constante na cabeça, provavelmente provocado por algum álcool a mais que lhe corria no sangue mas que tinha agora parado por uns momentos para respirar, o que lhe causava aquela aguda dor de cabeça. Tentou, a custo, abrir os olhos. Primeiro experimentou o esquerdo mas sem resultado, encontrava-se colado entre a segunda e a terceira pestana e a base do occipital por uma ramela recorrente. Passou então ao direito, que abriu à primeira tentativa e depois de duas ou três piscadelas estava de novo operacional. Livrou-se depois da ramela com um pé de cabra e saiu do carro para tentar compreender o que raio se teria passado para se encontrar naquela desconfortável situação, começava agora a aperceber- se de onde estava, um caminho agrícola salpicado por laranjais de um lado e do outro a escassos cinquenta metros de sua casa pelo caminho certo. Pelo errado podiam ser quilómetros por vezes. Perfeitamente estacionado entre duas laranjeiras estava o seu carro, o que acabou por lhe proporcionar umas boas horas de sono, apesar do calor.  Aproveitou a proximidade das árvores de fruto e apanhou meia dúzia de laranjas,  espremeu sete para dentro do depósito e as restantes pendurou- as de volta nos respectivos ramos.
Aos poucos começavam a chegar- lhe, em flashes,  imagens da noite anterior. Lembrava- se de ter combinado um jantar com Margarida,  uma morena espampanante que conhecera na praia e que não lhe saía da cabeça, mais tarde encontarara- se com Brás e Zé do Pipo, dois amigos de sempre, para a habitual fresca ao fim do dia na tasca do próprio Brás. Ritual diário essencial onde bebiam umas cervejas e se conversavam e debatiam os mais variados e inúteis temas. Mas por vezes havia um aditivo, Zé do Pipo,  que tinha parentes na serra de Monchique,  trazia umas garrafas do mais puro medronho, daqueles com teor de álcool desconhecido,  capaz de nos virar do avesso,  e lavar e pôr a secar. Mais alucinógeno do que qualquer tipo de absinto,  chamavam- lhe o continuum espaço-temporal devido à sua capacidade de desintegrar o tempo e o espaço e misturá- los, qual bimby,  até não conseguirmos distinguir um do outro. E na  noite passada não fora diferente,  restava agora um vazio de memória, apenas e só,  como recordação. De resto, e tirando a sensação de ter milhares de dentes afiados a morder- lhe o cérebro, estava pronto para outra.
Entrou no carro mas teve de voltar a sair para desviar uma das laranjeiras vinte centímetros para a direita,  saiu do laranjal e seguiu até casa para um duche frio e um café amargo, ou pequeno almoço como gostava de lhe chamar. Pelo caminho deu de comer ao gato, regou as plantas e livrou-se daquele vício que já o andava a incomodar há algum tempo.  Deixou-o no Ecoponto no contentor das manias irritantes, mas ficou na dúvida se o devia ter depositado no das tendências mesquinhas . Era o vício de perguntar aos outros quanto auferiam de ordenado para depois lhes esfregar na cara que o seu era muito superior. O que já de si era estranho tornava- se ainda mais vindo de um tipo que era pago em caroços de pêssego.
Pegou novamente no carro, calculou que pesava aproximadamente mil e cem quilos e depois entrou e desejou não ter devolvido as laranjas porque estava outra vez na reserva. Conduziu até casa de Zé do Pipo onde, estacionadas à porta, estavam a 4L do Zé e a bicicleta do Brás,  que dava ares de estar desidratada porque estava presa a cadeado a um poste à torreira do sol. Subiu as escadas que davam para a açoteia e voltou a descer porque queria ir para o jardim, onde os encontrou a escorrerem pelo chão com o calor. Apanhou-os,  à vez, com um balde e uma esponja e escorreu-os para dentro do congelador, de onde os tirou passadas umas horas novamente sólidos. 
Zé do Pipo era um filho da terra,  pescador como já o seu avô o tinha sido toda a sua vida, de cara dura, cortada pelo sol,  sorriso raro mas sincero quando acontecia e uma vincada tendência para desconfiar de tudo e todos,  para Gomes de Sá não mais do que um pormenor que ultrapassara sem dificuldades maiores. 
Encarregava-se, naturalmente, de fornecer o peixe e o marisco mais fresco para as suas reuniões na tasca do Brás,  que os temperava o mínimo possível e os cozinhava também o mínimo possível. 
Brás,  que na realidade se chamava Dimitrius chegara a Portugal uns anos antes vindo da Europa de Leste, mais propriamente da ex Jugoslávia,  com os seus pais que acabariam por regressar ao país de origem passado pouco tempo. Mas não sem antes lhe deixarem uma pequena tasca estabelecida junto à praia dos pescadores. Rapaz decidido, pouco tempo depois da sua chegada já falava fluentemente português, com sotaque algarvio obviamente, algo que aprendera à boleia da necessidade pois precisava do português para negociar com os desconfiados habitantes locais, nos quais também não confiava por esse preciso pormenor.
Conhecera Gomes de Sá na tasca que na altura era dos seus pais. No tempo em que compravam o peixe ao Zé Inácio,  pai de Zé do Pipo. Mais tarde começaram a encontrar-se os três por acaso para uns petiscos e umas fresquinhas,  a ver o mar e a deitar conversa fora, até que um dia se tornou oficialmente oficial. E punível de acordo com a lei vigente qualquer falta a uma destas tertúlias que começavam sempre de maneira brilhante mas que nunca se sabia como iam acabar. No dia seguinte apanhavam do chão os respectivos restos mortais e recomeçavam daí. 
- Alguém viu onde deixei a minha cabeça? Perguntou Brás. 
- A cabeça não sei mas a dignidade posso dizer- te que a vi quando a deixaste pelo chão no bar do Mark Snuggels. Respondeu Zé do Pipo. 
Gomes de Sá não respondeu pois não se lembrava de nada a partir do primeiro copo de medronho. Nem mesmo de ter estado no bar de Mark.
- Aqui o Gomes de Sá é que a sabe toda, disse Brás.  Olha lá ó Di Caprio do barlavento algarvio, quem era aquela morena com  quem eu te vi a sair do bar todo contente a esfregar as mãozinhas?
- Morena? Retorquiu Gomes de Sá surpreendido e confuso ao mesmo tempo.
- Sim, morena. Loira é que ela não era, não te faças de parvo que aquilo não era coisa que passasse despercebida, dizia Brás enquanto dava repetidos toques com o cotovelo em Zé do Pipo, e continuava: pena a pochette não condizer com os sapatos, caso contrário seria perfeita. Não me vais dizer que não te lembras.
- Não faço ideia do que estás pr'aí a falar, só me lembro de acordar esta manhã com os pés em cima do tablier no terreno do Ti Chico Mendes, disse Gomes de Sá cada vez mais intrigado.
- Agora começo a pensar que estás a gozar com a minha cara, passaste por mim e pelo Zé do Pipo com uma garrafa de Muralhas numa mão e dois copos na outra a dizer que ias para a guerra e podias não voltar. 
- Zérinho. É o que me lembro de tudo isso, maldito medronho, quer dizer...bendito, já nem sei, parece que me abocanhou o hemisfério esquerdo do cérebro.
- A quem o dizes, interveio  Zé do Pipo.
Nisto eram quase sete da tarde, hora ideal para ir até à praia desintoxicar do medronho e para a paragem obrigatória na tasca para o tratamento de choque,  que consistia basicamente numa boa refeição.  Uma sopa de peixe seria o ideal, quente e reconfortante, pimpilante de aromas frescos e sabores intensos, o peixe fresco, o pimento e os coentros eram cura mais do que suficiente para as mazelas causadas por uma noite agitada, suficiente para recuperar o corpo e a alma. De seguida cada um apontaria os sapatos para o seu casulo para encontrar o sono perdido. 

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Estupidificante

Portanto é suposto eu estar acordado mas ao mesmo tempo a dormir? Ultrapassa-me, o meu limitado cérebro entra em conflito, dêem-me drogas duras,  anestesias em doses equídeas ou então nada feito.
Há séculos que é assim,  sempre houve injustiça na distribuição da riqueza, dos direitos, dos prazeres, dos poderes. Tudo muito certo, eu mastigo esta teoria. Mas não a engulo. Porque hoje em dia temos pessoal a ir à Lua em turismo, estações espaciais, aviões invisíveis aos radares, bonecas e bonecos em tamanho real à conta dos avanços na indústria aeroespacial, do investimento no armamento e na cirurgia plástica.
Não me estupidifiquem, acima de tudo não se deixem estupidificar.  Andamos a desviar recursos para solucionar problemas que nunca tivemos e a deixar para trás o que é realmente importante. O facto de termos acesso facilitado à informação claramente não ajuda porque nos dispersa. Mas por outro lado estamos mais perto de denunciar as injustiças e abrir caminho para a uniformização da distribuição dos recursos, ou seja, pedir contas aos ricos, que sempre beneficiaram com todas as crises. 
Reajo por instinto. Como qualquer animal selvagem que luta até ao fim quando vê ameaçada a sua liberdade, e quanto mais o apertarem mais enérgica e furiosa a sua reacção será. O que não quer dizer que escape sempre ao seu predador,  mas não desiste perante uma situação adversa, para a qual não contribuiu mas que aconteceu e que o afecta directamente.
Por isso acalmem-se, relaxem, meditem, tranquilizem-se, mas mexam-se um bocadinho. Todos juntos, cada um por si próprio. Lutem, um dia de cada vez, e deixem a tranquilidade para quando for possível saboreá-la. 

Fertilizante

Quando eu morrer vou fazer adubo para debaixo da terra, que me há-de comer os olhos.
Que se regale, que se empanturre de mim e que no fim solte um sonoro arroto com bafo a vida vivida e não a outra coisa parecida.
Não um quase quase, nem um mais ou menos, mas um tudo ou nada. 

domingo, 17 de agosto de 2014

estórias de encantar - a primeira grande guerra

Foi num desses dias perdidos no calendário que acertaram um no outro, à queima roupa, sem qualquer hipótese de sobrevivência para qualquer um dos dois. Mas só deram por isso um par de meses mais tarde numa das deslocações de Margarida para a sua habitual sessão de terapia de Sul.
Era um fim de tarde em Setembro quando o Sol já se punha e a Lua espreitava num cantinho do horizonte, coisa que o horizonte até nem tem,  se repararmos bem. Um daqueles raros momentos em que os dois astros se cruzam, em que eles abalaram as fundações um do outro, e de algumas habitações na vizinhança, com a onda de choque que sucedeu.
Ela passeava à beira mar, ele dava um mergulho depois de um dia de trabalho, saboreando calmamente a sua praia após mais um Verão em que tivera de a emprestar a uns bons milhares de banhistas que a tornavam quase inacessível durante maior parte da estação. Mas o generoso Sul acabava sempre por compensar com dias inesperados de sol, calor e água à temperatura ideal nas mais inusitadas ocasiões. Por vezes em Fevereiro era possível dar um mergulho no mar e lavar a alma de todos os resíduos de Inverno que se iam entranhado na pele ao longo do tempo. Fungos, micoses, procrastinação, resmunguice, todas essas coisas que só servem de lastro que nos atrasa a vida, e no fundo nos estraga a pele. E sem pele temos de concordar que a vida seria muito mais complicada.
Pois foi assim, que num desses inesperados dias o inesperado aconteceu quando Margarida passeava à beira mar, cabelo ao vento, corpo bronzeado,  pé descalço na areia molhada. Mais valia que se calçasse para evitar o que viria a seguir, porém se o tivesse feito nada disto teria acontecido. De qualquer modo não tinha hipótese de o saber porque ainda não acontecera. Eu sei disso porque obviamente tenho acesso a informação privilegiada acerca do caso em questão, caso contrário eu próprio não teria qualquer utilidade nesta narrativa.
Voltando à praia, Gomes de Sá saía do mar quando ouviu ao longe alguém gritar. Era ela, Margarida,  acabadinha de pôr o pé em cima de um peixe aranha distraído que não conseguira fugir a tempo, e que com certeza andava perdido pois não era peixe que se visse muito por aqueles lados, mais um desgraçado com problemas de geolocalização. Ele apressou-se a ajudar e, fazendo-se valer do curso de primeiros socorros tirado no Burkina Faso, agarrou-lhe no pé e deu uma volta de 180 graus no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio, como manda o manual, o que fez com que este se desenroscasse e pudesse assim de seguida ser encaminhado para a farmácia mais próxima para lhe ser aplicada a dose certa de cloreto de etilo, o famoso spray milagroso.
Enquanto esperavam que o pé desinchasse para poderem colocá-lo de volta no lugar combinaram jantar mais tarde, apaixonar-se violentamente, ter filhos e ficar juntos para todo o sempre.
Escusado será dizer que à hora do jantar nenhum deles apareceu . Por razões óbvias que ambos desconheciam. Ele tinha sido absorvido pelo continuum espaço-temporal, do qual só conseguiria encontrar a saída na manhã seguinte a muito custo. Ela não estava a conseguir combinar a pochette com os sapatos.
Mas ainda tinham o dia seguinte, ou seja hoje, para o tudo ou nada,  para conquistarem ou serem conquistados numa última batalha até à morte, até ao último suspiro do último a ficar de pé. Preparavam-se as tropas de um lado e do outro, limpavam-se as armas e alinhavam-se estratégias.
Ele planeava entrar a matar,  isto se algum dia a voltasse a encontrar, seguindo a filosofia de que a melhor defesa é o ataque levá-la-ia até àquela praia que só os locais conheciam, mantida secreta ao longo de gerações e gerações,  partilhar com ela o seu maior segredo seria a sua arma de destruição maciça. E se isso não se revelasse suficiente iria munido com uma garrafa de verde fresquinho, carregada e pronta a disparar,  e dois copos prontos para se juntarem à frente de batalha. Tinha tudo planeado, era impossível perder, pensava ele. Contar-lhe-ia estórias de pescadores e sereias encantadas que os pescavam sem dó nem piedade naquele mar sereno que era o sustento de muitos naquela pequena cidade. E a paixão de todos, um mar que nos unia a África, terra mãe de todas as terras, que trazia correntes quentes de corações quentes que nunca arrefecem, mesmo diante das maiores provações, corações que cantam na adversidade, que sorriem diante de um destino que, por vezes, é negro como a pele que vestem. Mas tudo o resto é claro como água porque não sabem ser tristes, isso é coisa que por lá não se ensina, até porque não sabem o que é ganância, tirando uns quantos que fizeram escola fora do continente, por essas europas afora. Ao não esperarem da vida mais do que ela lhes dá fazem-se felizes, constroem a sua própria felicidade com o que tiverem à mão,  e isso sim é ser-se rico.
Ao desapropriar-se de si esperava encantá-la com a sua sensibilidade, porque ouvira dizer um dia que as mulheres gostavam de homens sensíveis,  esperava assim atingi-la mesmo no meio da testa, qual sniper escondido na torre de uma igreja aguardando a melhor posição para o tiro, que se esperava certeiro.
Margarida, por seu lado, reunia todo o seu arsenal bélico, preparando-se para o sangrento confronto, não planeava sair derrotada desta batalha,  caso acontecesse claro. Vestiu o vestido branco, leve, esvoaçante, parecendo casual mas pronto para infligir sofrimento às tropas inimigas, uma verdadeira arma de abisbilização maciça. Distraindo o inimigo logo à partida garantia a vantagem estratégica no campo de batalha, depois era só ir sacando das armas gradualmente e com muita calma.
Iria começar por um leve pestanejar, passando de seguida a uma pequena e envergonhada gargalhada no momento certo. De quando em vez atiraria um inofensivo e sensual esgar de ombros prontinho a desmembrar as defesas inimigas, aqui e ali deixaria inusitadamente cair uma das alças do vestido sobre o ombro, à vez para causar mais danos . Em último caso, e caso tudo o resto falhasse, acabaria por despir inocentemente o vestido para dar um mergulho no mar, deixando o pobre Gomes de Sá de bandeira branca hasteada prontinho a render-se ao inimigo em dois tempos.
Não se adivinhava uma guerra justa esta, por outro lado não existem guerras justas, ou que se justifiquem. A não ser no amor claro. E estes dois tinham perfeita noção disso. E estavam prontos para o que desse e viesse,  armas em riste, prontas a disparar à minima provocação, instintos felinos apurados ao limite para maximizar a reacção aos avanços das tropas inimigas, concentração budista para nunca perder o foco no objectivo. Tudo coreografado ao pormenor vezes sem conta até não restarem pontas por atar, com precisão helvética. 
Só que, com tudo isto, o dia acabou por passar adiando o inadiável confronto até data incerta.


sábado, 16 de agosto de 2014

estórias de encantar - miúda lunar

Sabemos que queremos realmente alguma coisa quando estamos dispostos a apanhar algum tipo de cancro de pele para a alcançar, e ele obviamente estava, porque o Sol não está para brincadeiras segundo dizem.
Nas redondezas da capital Margarida estava como peixe na água, o que dava sempre jeito porque se fosse como orangotango ou girafa na água a coisa seria com certeza mais complicada, e disso não restavam dúvidas. Inquestionavelmente mulher, sonhadora, atarefada, disponível, irrequieta, malabava vários projectos ao mesmo tempo e ainda lhe sobrava tempo para uma vida social extremamente intensiva. Encontrava a paz em noites de Lua cheia, daquelas em que podemos ver a luz do luar atravessar as partículas de ar em pequenas explosões coloridas. Tentara até uma dessas noites, em que a Lua está tão perto que quase podemos tocar-lhe, cortar um gomo para levar para casa e descobrir de que era feita, coisa desnessária a meu ver porque toda a gente sabe que é de algodão doce. Doce era a palavra a usar, e abusar, quando se descrevia Margarida. Começando pela embalagem, perfeitamente acondicionada, de design sublime e acabando no furacão que era o seu âmago, profundo, consciente, incendiário. O que explicava o calor sentido cada vez que se aproximava, de derreter o raciocínio lógico do mais anti-inflamavél dos homens. Dividia o tempo, e o espaço, entre Lisboa e o Sul, onde rumava em religiosa peregrinação mês sim, mês não e onde passava não mais do que dois dias para libertar as más energias acumuladas por uma vida urbanizada que não trocava por nada deste mundo. A não ser naqueles dois dias em que deixava o mar lamber-lhe as feridas de guerra e o Sol curar-lhe as mazelas impostas por tantas batalhas.
E eis que chegamos ao momento de fazer uma pausa cibernética para um breve regresso à caneta e papel, que se impõe devido à importância dos momentos que hão-de vir para o encadeamento desta narrativa. Não me culpem a mim, eu nem sequer concordei com esta idiotice, fui aqui deixado por esta amostra de escritor para vos narrar uma pseudo-história sobre qualquer coisa que ninguém entende qual é e talvez nunca venha a entender. E apenas e só porque sou primo afastado da Margarida e habito um pequeno espaço na sua casa. Mais concretamente a terceira gaveta a contar de cima por baixo da bancada do lava-louças. Digamos que o faço para pagar a renda. Agora se me dão licença vou só ali pôr a placa a dizer volto já.

estórias de encantar - puto solar

Gomes de Sá era o típico puto dos subúrbios, revoltado com tudo por culpa de todos, procurando respostas para perguntas que não tinha feito, e sempre nos sítios errados, preocupado com ninharias que se tornavam maiores do que ele próprio acabando por soterrá-lo debaixo de avalanches de futilidade. Tentara durante uns tempos, sem sucesso diga-se, encaixar-se na urbe, no ritmo acelerado que tantas vezes parece despropositado das grandes cidades. Apaixonara-se inevitavelmente, uma e outra vez, por Lisboa. Do Bairro Alto, do chocolate quente no Cais do Sodré, do mercado das flores às terças e quintas no Mercado da Ribeira logo pela manhã, acabadinho de sair do trabalho algures na 24 de Julho. Lisboa das luzes, dos cheiros, do bruido constante, dos recônditos recantos encantados onde nos namora como se fosse só para nós. Cidade mulher da sua vida como dizia a canção.
 Nascido no frenesim da cidade mas com a cabeça na tranquilidade dos grandes espaços, acabou uns anos mais tarde por trocar, naturalmente, os subúrbios de Lisboa por um cantinho à beira mar o mais a Sul possível, antes de cair no mar ou chegar a Marrocos claro. Talvez em busca de uns ventos de África, que, como se sabe, carregam música e felicidade, e, obviamente e por essa mesma razão, calor. Da Europa só lhe sopravam ventos frios de austeridade, caras de poucos amigos congeladas em arcas frigoríficas de Bancos Centrais juntamente com os restos mortais de alguns que tombaram pelo caminho à conta do frio.
No Sul o Sol tempera-nos com um sorriso estampado no rosto, ao qual não conseguimos escapar porque somos inevitavelmente solares. É verdade que também nos mói e amassa, e nos traça o rosto com traços de tempo que nem o tempo apaga, mas ganhamos em luz. Adiante, jardineiro de coração, Gomes de Sá multiplicava-se em diversas outras profissões porque o Sul, por muito amável e generoso que fosse ao nível da distribuição da luminosidade, era dispendioso em basicamente tudo o resto. Já para não falar na questão da sazonalidade, que era o mais sazonal possível lá para aqueles lados. Tudo era sazonal, a educação, a cultura, o trabalho, por vezes até a própria inteligência parecia ficar uns tempos sem aparecer. Nada que o impedisse de continuar a lutar pelo seu raio de sol, directamente da grande estrela para o seu pequeno quintal.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

estórias de encantar - perdido no espaço

Mas lá dentro algo lhe dizia que era hoje o dia, por alguma estranha razão sentia que estavam mais perto do que alguma vez estiveram nestes últimos três anos.  Mais tarde percebeu que a voz que pensava vir de dentro era afinal de um primo afastado que morava por baixo da bancada do lava louça, na terceira gaveta a contar de cima.
A verdade é que estavam tão perto que se tornava longe, e ao mesmo tempo tão distantes em quilometros como em milhas do ponto mais distante entre a e b. E isto em linha recta e à hora de ponta o que, parecendo que não, complicava as contas ao amor, que não conseguia triangular a localização de Gomes de Sá por falta de um vértice. E entretanto Margarida desesperava, dava voltas ao quarteirão dias a fio, colava cartazes a dizer procura-se, punha anúncios em todos os jornais, inscrevia-se no Yoga à segunda e no Zumba à quarta. Às terças e quintas dedicava-se ao voluntariado para espairecer. Só parava para ir até aquele bar onde os seus olhos ansiavam por tocar os dele mas onde ele nunca voltava com medo de abandonar a porta que julgava sua mas que não o era.
Finalmente acabou por encontrá-lo perdido no MySpace,  o que explica porque havia desaparecido do radar durante todo este tempo, afinal quem é que ainda usa o MySpace? Podemos até dizer que foi um golpe de sorte este reencontro, uma espécie de Jackpot na lotaria do amor. Sol de pouca dura porém porque cinco minutos depois de o ter encontrado logo o perdeu outra vez, falhas de rede, acontece que a banda larga móvel dele se tinha imobilizado em solidariedade com um piquete de greve que protestava contra o tráfego ilimitado. E não havia fim à vista para as negociações. O Universo continuava a conspirar contra estes dois. Ou seria a seu favor?

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

estórias de encantar - a porta certa na rua errada

Determinado em não desistir,  vestiu o vestido e guardou o maxilar onde pôde, uma vez que o vestido não tinha bolsos. Por três anos esperou à porta dela, mesmo sem na realidade saber se era a porta certa, dado o curioso facto de nunca ter estado em sua casa. Mas, segundo dizem, o que conta é a intenção. E foi com intenção de contar que o fez, até porque descontar era coisa que já não podia mais, ainda o mês passado lhe tinham aumentado a Contribuição Voluntária Para Ser Aldrabado (CVPSA) para 105% e o Imposto Sobre os Pensamentos Inoportunos (ISPI) para 125. E, obviamente, em três anos de espera pensamentos inoportunos era coisa que não faltava a Gomes de Sá,  jovem rapaz com nome de prato típico português e muitas ambições,  todas elas envolvendo uma passagem de avião para qualquer outro lugar que não aquela porta onde esperava a sua sorte. Mas não se imaginava a sair dali, nem por breves instantes, não fosse ela passar. Margarida podia ser o seu nome, florida, cheirosa, pensava baixinho para não se acordar. Se ao menos ele soubesse que na realidade o era.
Duas ruas acima, na porta certa, Margarida sonhava acordada com aquele moreno de sorriso franco e olhar sereno com quem os seus olhos se cruzavam naquele cantinho escuro junto ao bengaleiro, no lugar onde duas vezes se encontraram. Em pessoa, porque muitas outras se cruzaram em sonhos, antes e depois de se terem conhecido. Mas, por uma estranha razão perdera-lhe o rasto há coisa de três anos. O seu GPS já não localizava a matéria etérea que era o seu amor, talvez tivesse perdido momentaneamente o sinal, ou se calhar bastava apenas ser actualizado. Ela bem tentou procurar, mas nem no Google Maps teve sorte.

estórias de encantar - momento certo na hora errada

A última vez que se cruzaram ela estava junto ao bar, mordendo o lábio inferior tentando parecer sexy. Ele fixava-a de longe tentando não parecer interessado. Por vezes os seus olhares tocavam-se, por alguma razão sempre naquele cantinho escuro junto ao bengaleiro, depois separavam-se e seguiam o seu caminho, timidamente, cada um para seu lado. Era esta a imagem que tinha agora agarrada ás paredes do seu cérebro com unhas e dentes, a imagem do vestido leve, esvoaçante, a mostrar apenas o essencial mas deixando a essência por descobrir, o corpo torneado, desenhado por anjos decerto, capaz de nos fazer ajoelhar em oração a qualquer que seja o criador de tal obra, reencontrar a fé perdida, renovar a esperança na Humanidade até, quem sabe? A mesma imagem que o trouxe até aqui no dia de hoje, precisamente a esta hora, exactamente no mesmo local. Ela lá continuava, junto ao bar mordendo o lábio, mas esquecera-se de ser sexy e tinha já mastigado metade do maxilar inferior com os nervos, o que inviabilizava completamente qualquer esboço de intenção dele em se aproximar e oferecer-lhe um copo, ainda para mais porque se torna complicado beber seja o que for sem um dos maxilares. Para além disso o vestido já não era o mesmo. Chamou um táxi e foi para casa. Regressou passado umas horas com um maxilar novinho em folha numa mão e o vestido certo na outra. Mas no seu lugar já só encontrou uma poça de baba.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

macacos me mordam

Cada vez me parece mais que a estupidez é a única arma contra o aborrecimento, o que cada vez alarga mais as minhas possibilidades de proliferar por aí. Tenho o stock de estúpido carregadinho até ao tecto, e já tive de fazer obras para subir um pouco o tecto. Mas ficaram a meio e agora tenho a estupidez em risco de apanhar midades e fungos, ou mesmo quem sabe uma valente patite, coisa que não me dava nada jeito uma vez que é a obra de uma vida que está em risco se virmos bem. Pelo sim pelo não chamei um especialista. Problema resolvido, fiquei muito mais tranquilo, mesmo que nem cá tivesse posto os pés em casa, a própria palavra especialista funciona quase como um mantra budista. Continuo com a estupidez em vias de apanhar uma broncopneumonia mas, com a tranquilidade alcançada e fixo ao Universo nos vários pontos de ancoragem consigo pôr o assunto em perspectiva e, calmamente reflectindo, chegar mesmo a concluir que até estamos em Agosto e, em princípio, os fungos e as midades não atacam nesta altura.

A tónica do gin

Há quem, de vez em quando, se apaparique com uma massagem ou um dia no spa. A mim é o gin que me massaja a alma. Não sempre que posso, porque a alma até me agradece mas o fígado fica danado comigo, mas sempre que se torna possível. E sempre na medida certa que, como toda a gente sabe, é sempre a medida exacta, dependendo do grau de periclitância do sujeito em questão ou do grau de dificuldade da intervenção a intervencionar. O que é que isto quer dizer? Basicamente nada. Que conclusões tirar daqui? As melhores possíveis atendendo às condições de execução do executante. Coisas que acontecem quando na mão surge uma caneta e à frente uma folha de papel por preencher, é eléctrico-magnético-profilático, é mais do que certo que alguma coisa vai acontecer, e muitas vezes não no melhor sentido.
A caneta é um ser que viaja em todos os sentidos, que neste momento me arrasta atrás de si enquanto tento não entornar o gin.
Deitado na rede fui à lua e voltei três vezes a ver se me passava a efervescência, mas entretanto servi-me de mais um copo para acalmar os folículos capilares. Por fora estou quase dormente, abençoado gin tónico, mas por dentro estou aos saltinhos em furiosa euforia aeróbica. E um, e dois, e só mais um, e um, e dois,no fim saio com a alma lavada. E tonificada, prontinha para ir até à avenida mostrar o caparro.

sábado, 9 de agosto de 2014

Há coisas que devem ser ditas neste país

- ao Carlos Costa: realmente começam a notar-se os resultados dessas aulas de inglês com o Zézé Camarinha.
- ao Jorge Jesus: já mudavas de barbeiro não? 
- aos empregados de mesa no Algarve e aos gajos que fazem os manuais de instruções: em por-tu-guês caralho!
- aos senhores do ministério público que trataram dos casos que envolviam o Ricardo Salgado: muitos parabéns meus queridos. agora só falta começarem a apanhar os bandidos antes deles passarem à reforma e/ou adicionarem mais alguns zeros às suas contas, ok? fofissimos. 
- ao Ricardo Salgado: que tal se está na piscina doutor?
- aos revolucionários clandestinos do PND: eu até compreendo que precisamos de uma revolução urgente. só acho que não havia necessidade de estragarem uns lençóis tão jeitosos em nome do processo revolucionário.  ainda por cima são só três; na Madeira por amor da santa. provavelmente vão na rua com o lençol ao vento todos clandestinos da vida, passam pela vizinha que diz: boa tarde Chequinho, então não vais bailhar mai logue? e tu  Ricarde não queres ir vé o fogo de artífice camuigue? não queria ser eu a dizer- vos mas não me parece que vá resultar.
- ao Pedrinho da Mantarota: li algures que há um rinoceronte anormalmente excitado no Parque da Gorongosa que tem vindo a ser alvo cada vez maior da curiosidade dos visitantes. não apreciaria ir até lá e gentilmente afagar-lhe o nabo com os beiços da sua excelentíssima e reafirmadíssima entrefolhagem anal? o mais cordialmente possível, claro. e com a maior admiração e respeito. 
uma coisa que não sou é mal educado, levei muita chapada no focinho e por elas agradeço à minha mãezinha, metro e meio de gente que eu gostava de apresentar a meia dúzia de meninos que não respeitam os cargos que ocupam. até vinham a nadar da Mantarota,  sempre debaixo de água, e só respiravam quando chegassem a Lisboa. tenho dito.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

não encontrei uma zinderella ainda. e já nem me lembro onde deixei o sapato

às vezes tenho a sensação de estar em loop. há em mim um desassossego recorrente, que me chega de dentro. elefantes na barriga, em caótica e frenética manada. ainda está por descobrir a substância que provoca esta estranha reacção e por consequência o seu antídoto. para quem quer que seja o doido varrido que o queira tomar.

domingo, 3 de agosto de 2014

(bad) banks? no thanks!

Já experimentaram dirigirem-se ao balcão de um banco pedir um empréstimo dizendo que não têm a mínima intenção de o devolver? É fácil prever qual seria a resposta. Pois bem, é o que nos têm feito os bancos, com o aval dos governantes. Basicamente andamos a pagar os excessos e as falcatruas de uns quantos milionários que não estão minimamente preocupados em nos pagar de volta.
Eu agradeço,  do fundo do coração, mas não estou interessado em adquirir um (mais um) bad bank, nem um good bank se querem saber. Muito menos se daí não tirar nenhum proveito.
Ou seja, eu até aceito pagar mais esta crise mas, como não fui eu que a causei, espero em troca contrapartidas, como por exemplo investimento dos bancos na saúde, educação, segurança social,  etc. E obviamente não no privado.
Caso contrário que razões me podem dar para eu pagar com o meu dinheiro os erros de outros? Erros esses que beneficiaram meia dúzia de famílias em detrimento de um país inteiro. Tenho sérias dúvidas que encontrem uma justificação válida e por isso penso que podemos bem deixar cair os bancos e deixá-los aprenderem a andar sozinhos. E com o que poupamos  no resgate criar fundos para que possamos assegurar, entre outras coisas, as nossas pensões no futuro. Ou mesmo investir na nossa agricultura, melhorando assim a nossa sustentabilidade, o que não falta em Portugal são áreas onde se pode melhorar.
Se usarmos para termo de comparação a pipa de massa que Durão Barroso anunciou como apoios da UE para a agricultura e pescas (26 milhões de euros) contra os 3.5 mil milhões (que poderão ser mais) do buraco financeiro do BES não é difícil perceber que ganhariamos muito mais se nos associassemos e investissemos em nós,  com a mesma taxa de esforço com que o faríamos por outros.
Fácil também é concluir que estaríamos mais desenvolvidos se não tivéssemos de resgatar bancos década sim década não.