Enche a pança que eu pago.
Enche a pança, que me hás-de um dia
comer o sapato com laranja;
e saber-te-á a caviar beluga e a faisão de canja.
Aperta a gravata, ajeita-lhe o nó, que eu pago.
Endireita o lenço de cetim na lapela
do fato Armani que eu comprei para ti.
Ó coqueluche de coisa nenhuma.
Das universidades onde o saber não ocupa lugar algum.
Ó massa cinzenta a apanhar pó,
nas prateleiras do know-how e do management
das contas de subtrair e de sumir com o que é dos outros.
Ó laço, lacinho, laçarote
para empiriquitar o inempiriquitável.
Ó quilos de maquilhagem dos olhos aos entrefolhos,
qu'é merda que não há esgoto que esgote.
Ah, que eu sinto, sinceramente,
que sou a central de Fukushima e o Coliseu a arder.
De todas as bonecas que podias comprar
escolheste a mais cara (que nem sequer era a melhor).
Carregadinha de aditivos e de toda a espécie de conservantes,
mais a coleira de diamantes que eu paguei,
que lhe puseste logo ao pescoço à laia de ferro em brasa no quadril.
A legítima esposa deixaste-a em casa apalaçada paga com conta off-shore,
numa de chás, canapés e canasta; e, de quando em vez, férias pagas por mim no Brasil.
Tu, que nem sabes contar até mil, só a partir de um milhão.
E eu aqui, na migalha da migalha
sem um tostão para esconder no off-shore,
com a austeridade entalada na garganta
e sem nada para ajudar a empurrar.
Ó côdea de pão com três semanas
que o diabo amassou em noite de trovoada.
Ó trabalho precário mais ou menos pago
às vezes que é melhor que nada.
Ó meia rota qu'é para ajudar a arejar.
Ah, que eu sinto, sinceramente, que sou a central de Fukushima e o Coliseu a arder.
por Monsieur Lefebre, (esboço de) poeta repentista experimentalista do barroco pós-moderno e acérrimo percursor do movimento anti-troglodita
sábado, 24 de janeiro de 2015
quarta-feira, 21 de janeiro de 2015
No Planeta Vazio
No planeta vazio não há pessoas, apenas invólucros e embalagens. Milhares de milhões de embalagens. Que se passeiam de um lado para o outro montadas em embalagens muito brilhantes, com rodas também muito brilhantes, há algumas até que voam, que usam para mostrar às outras embalagens que são um tipo muito superior de embalagem, alheadas do facto de serem todas exactamente iguais. E a que tem a que brilha mais ganha, apesar de não ganhar absolutamente nada. O dia a dia é passado a tentar acumular o máximo de pedaços de papel, que podem ser posteriormente usados para acumular mais embalagens, e quem tem mais pedaços de inútil papel ganha. E quem acumular mais embalagens também ganha. Deve ser divertido viver no Planeta Vazio. E simples, estupidamente simples acredito. E aborrecido, tragicamente aborrecido por vezes, imagino.
sexta-feira, 16 de janeiro de 2015
A cena do ódio - Almada Negreiros
|
terça-feira, 13 de janeiro de 2015
Longitude
Quando eu te falei em amor não era a sério, e ainda bem porque de qualquer maneira tu não estavas lá para ouvir. Eu estava só, tão só como se pode estar no meio de uma multidão. Tão singular e circunscrito como só eu sei ser dentro deste corpo de delitos e pequenas infracções à monocromia. Deixei uma luz acesa para que ninguém tropeçasse na hipocrisia, que dormia num degrau das escadas, e saí. Não era a primeira vez que saía, sem saber para onde, sem dar um passo, agarrado a um livro ou a um caderno, e viajava mundos inteiros, de fio a pavio. E sonhava sonhos impossivelmente impossíveis, em que me cresciam asas, mas por dentro.
Normalidade
Liberdade de pressão, qual panela ciciante pronta a rebentar. Realidade de cartão geneticamente modificada. Na liberdade de expressão enlatada semeia-se a depressão, daí esta constante falta de ar. Quase que é mas nunca chega a ser, parece que é agora. Ou agora. Ou agora. Mas nunca chega a acontecer.
É preciso pagar para ver e ver para crer no que não acreditam os próprios olhos. É preciso muito mais do que bandeiras que se agitam enquanto os processos se arquivam aos molhos, palavras que se gritam enquanto a caravana passa e nos leva couro, cabelo e carcaça. Com medidas desmedidas avulso, tomadas entre fartos almoços, tirem as mãos dos meus bolsos, são sete cães a um osso, mas eu reajo por impulso e também mordo se a coisa der para o torto.
domingo, 11 de janeiro de 2015
Os ofendidinhos
Antes de mais quero apenas dizer que este ano só tenho amor para dar. Quem me conhece sabe que sou um querido, mas este ano estou irremediavelmente apaixonado, amo toda a gente, em especial quem nunca amei ou amarei em tempo algum. Amo a Isabel Jonet, o Ricardo Salgado, a Angela Merkel e o Netanyahu que são Charlie mas ninguém diria. Amo o Soares, o Cavaco, o Durão, o Sócrates e o Pedrinho, que governaram e governam mas também ninguém diria. Amo, mas do fundo do baú do amor que guardo dentro de mim, o Ministério das Finanças e todos os seus funcionários, a quem aproveito para desejar aqui um bom ano. E é isto, nada mais do que amor para dar.
Apesar de tudo, há coisas que me continuam a atazanar o espírito, que pelos vistos não passam pelas cabecinhas de tanta gente indignada por tudo e por nada. Desde bonequinhos numa página de revista até sketches humorísticos na Internet tudo é uma afronta para quem se ofende com pouco.
O que deveria ofender muito mais os árabes é a forma como são tratadas as suas mulheres em certos países, impedidas de estudar, de opinar, de serem independentes. O que deveria ofender muito mais as sociedades ocidentais, ditas civilizadas, é a pobreza infantil, a corrupção, a galopante clivagem social que faz com que uns andem de jactos privados e outros durmam pelas ruas.
Mas isto sou eu a pensar alto, espero que ninguém se ofenda. Talvez isto sejam coisas de menos importância e eu esteja apenas a exagerar, não seria a primeira vez. Agora deixa-me lá ir ver quem ganha a Bola de Ouro, porque se não ganha o Ronaldo eu vou para a rua gritar como na canção do Zeca. Não me obriguem.
terça-feira, 6 de janeiro de 2015
Como um pinguim na Amazónia
São coisas que acontecem, que nos aparecem, que vêm sabe-se lá de onde e que ninguém sequer desconfia para onde vão. Num vão de escada sentada de pata cruzada estava uma rena transviada em pleno pico do Verão. Verão que vão ver o que quero dizer quando não tarda me acabem as palavras, as minhas melhores frases são ditas de boca fechada, as mais sábias palavras saem quando não digo nada. Que é como quem diz quando o sono me domina, ou seja, a maior parte do meu tempo disponível, em que me aborreço contando carneiros que teimam em multiplicar-se.
sexta-feira, 2 de janeiro de 2015
estórias de encantar - uma noite em branco (3)
Deixaram o carro, e o zelo, estacionados na vila e iniciaram a subida ao Monte da Lua. Por todo o lado nasciam plantas de todos os tipos, que rompiam pelas pedras conquistando a serra e envolvendo-a num fervilhante manto de vida em constante mutação.
Desviaram-se da estrada e avançaram pelo mato adentro, sempre a subir por entre as árvores. Lá em cima a Lua desenhava a silhueta de um castelo, havia algo no ar que lhes causava arrepios, qualquer coisa que não conseguiam explicar mas que os fazia moverem-se com destreza felina por entre o mato, saltando de pedra em pedra ou agachando-se aqui e ali, como por instinto, para fugir de um ou outro ramo no caminho. A escuridão só era interrompida por alguns raios de luar que conseguiam romper pelas copas das árvores.
Pararam numa clareira salpicada por enormes pedregulhos de granito para finalmente desfrutar da recente aquisição de Brás na sua aventura no Bairro Alto. Conseguiam sentir o calor que emanava das monumentais pedras, subiram para a maior delas e sentaram-se a olhar o imenso céu. Sentiam a energia a circular, da terra para as pedras subindo por eles acima e fluindo de novo para a terra. Eram parte da corrente, e ganhavam aos poucos consciência disso naquele lugar de encantamento. As árvores pareciam esticar os ramos na sua direção, como que esboçando um cumprimento, a floresta enchia-se de vida e movimento, assinalando com eles o subtíl despertar de algo que traziam dentro de si desde que eram gente. A fronteira entre a floresta e os seus corpos desvanecia-se lentamente, tornando impossível distinguir onde terminavam as raízes das árvores e onde começavam as suas próprias raízes.
Brás sacou do cigarro de erva, levou-o à boca e chegou-lhe o isqueiro aceso, inspirando tão avidamente que desatou a tossir de imediato. Esperou um pouco e voltou à carga, desta vez menos ambicioso, mas mal tinha acendido o isqueiro e já o céu se tinha aberto para deixar cair sobre eles uma monumental carga de água, que libertava todo o tipo de sensações ao cair no chão. A vida que crescia em cada gota de chuva, a renovação a acontecer em cada poça de água, um milagre em cada valioso salpico.
Da terra emanava um quente aroma que os despertava com mais pujança que um café duplo. Ao fim de uns minutos, e tão de repente como tinha começado, a chuva parou, e de entre as nuvens surgiu de novo a Lua cheia.
- Bem, deixa lá ver se é desta. Disse Brás, preparando-se para acender o isqueiro, indiferente ao facto de estar encharcado até às meias.
- Sinto-me com dez metros de altura e vários quilómetros de diâmetro. Divagou Gomes de Sá.
- Tu realmente sempre foste assim para o cabeçudo. Disse Brás antes de soltar o fumo trancado nos pulmões, envolvendo-os numa nuvem que, por momentos, abafou o cerrado nevoeiro.
- Não é nada disso. Há qualquer cena nas árvores que eu não consigo explicar mas que desperta alguma coisa em mim.
- E é bom?
- Mais do que isso.
- Então, se calhar é melhor não tentares explicar que é para não estragar, o que quer que seja.
Continuaram a subida pela floresta, com passos lestos e decididos como se conhecessem a serra como as palmas das suas mãos e soubessem perfeitamente para onde caminhavam.
- Isto faz-me mesmo lembrar aqueles filmes de terror em que há sempre alguém que desaparece. E normalmente é sempre o que se deixa ficar para trás. Na floresta...uhuhuhu... Em noite de lua cheia. Observou Brás, já a dar corda aos sapatos.
- Já começas? Deixa-te lá mas é de filmes, está tudo tão tranquilo. Replicou Gomes de Sá, acelerando também pelo sim pelo não.
- Pois, é sempre quando está mais tranquilo que o último desaparece. Por falar nisso, não era aqui em Sintra que faziam uns rituais maléficos? Com galinhas e tudo.
- Deves estar a gozar, não vejo nisso qualquer motivo para preocupações. A não ser talvez o desperdício de uma boa cabidela.
Quando deram por eles estavam a correr pela serra acima entre tropeções, gargalhadas e uma ou outra rasteira de quando em vez para animar a coisa.
- Olha que o último desaparece. Insistiu Brás, passando a abrir por Gomes de Sá e desaparecendo de repente após tropeçar num ramo perdido e cair no chão, levantando-se de imediato, como se tivesse molas no rabo, e seguindo caminho a sacudir o pó como se nada se tivesse passado.
- Não é nada disso. Há qualquer cena nas árvores que eu não consigo explicar mas que desperta alguma coisa em mim.
- E é bom?
- Mais do que isso.
- Então, se calhar é melhor não tentares explicar que é para não estragar, o que quer que seja.
Continuaram a subida pela floresta, com passos lestos e decididos como se conhecessem a serra como as palmas das suas mãos e soubessem perfeitamente para onde caminhavam.
- Isto faz-me mesmo lembrar aqueles filmes de terror em que há sempre alguém que desaparece. E normalmente é sempre o que se deixa ficar para trás. Na floresta...uhuhuhu... Em noite de lua cheia. Observou Brás, já a dar corda aos sapatos.
- Já começas? Deixa-te lá mas é de filmes, está tudo tão tranquilo. Replicou Gomes de Sá, acelerando também pelo sim pelo não.
- Pois, é sempre quando está mais tranquilo que o último desaparece. Por falar nisso, não era aqui em Sintra que faziam uns rituais maléficos? Com galinhas e tudo.
- Deves estar a gozar, não vejo nisso qualquer motivo para preocupações. A não ser talvez o desperdício de uma boa cabidela.
Quando deram por eles estavam a correr pela serra acima entre tropeções, gargalhadas e uma ou outra rasteira de quando em vez para animar a coisa.
- Olha que o último desaparece. Insistiu Brás, passando a abrir por Gomes de Sá e desaparecendo de repente após tropeçar num ramo perdido e cair no chão, levantando-se de imediato, como se tivesse molas no rabo, e seguindo caminho a sacudir o pó como se nada se tivesse passado.
Subscrever:
Mensagens (Atom)